“Convicções novas rondavam-lhe o espírito, impondo-lhe o dever de penitenciar-se de um pecado tão grave quanto fora grande a delícia que nele sentira – o pecado de haver mergulhado os sentidos e o pensamento nos perigosos filtros que o bruxo do Cosme Velho sabia propinar com arte sorrateira e amável.”
A obra rara se divide em capítulos, cada um dedicado a um escritor de sua terra, entre eles Érico Veríssimo, Dionélio Machado, Vianna Moog.
O texto que destaco é sobre o jornalista, ensaísta, poeta, memorialista e folclorista Augusto Meyer (1902-1970), um dos pioneiros do Modernismo no Rio Grande do Sul. Meyer era um estudioso da obra de Machado de Assis, e escreveu um dos livros mais importantes sobre o escritor, Machado de Assis, outra preciosidade, de 1935. E justamente por ser um machadiano compulsivo, que Moysés Vellinho discorre o ensaio comparando - de certa forma elogiando - a escrita de Meyer com a “arte sorrateira e amável” do “bruxo de Cosme Velho”, referindo-se ao ilustre morador da casa número 18 da rua que tem o mesmo nome no bairro carioca.
Portanto, a primeira vez que Machado de Assis foi assim referenciado, tornando Moysés Vellinho o autor do epíteto, e não Carlos Drummond de Andrade, a quem é atribuído o crédito, numa leitura apressada que fizeram do seu poema A um bruxo, com amor, publicado no jornal Correio da Manhã, em 1958, e no ano seguinte no livro Poemas, pela José Olympio Editora.
O próprio Drummond, em uma crônica no mesmo periódico, na edição de 11 de setembro de 1964, esclareceu que “Devo reconhecer (...) que não me cabe a paternidade da apelação 'bruxo do Cosme Velho’, dada a Machado de Assis”. No poema não existe sequer o termo junto. O autor menciona “bruxo” no título e num verso, e o logradouro no início: “Em certa casa da Rua Cosme Velho / (que se abre no vazio) / venho visitar-te”.
Claro, Drummond não foi contemporâneo de Machado. Quando este faleceu, em 1908, o poeta era um menino de seis anos, e esperava o cometa Halley passar nos céus de Itabira em 1910 para encantar-se de poesia.
Drummond em seu poema visita o universo machadiano no espaço sagrado que o autor habitava:
- com Marcela, “a rir com expressão cândida”;
- com Virgília, “cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida”;
- com Capitu, que tem os olhos “abertos como a vaga do mar lá fora”;
e dessa forma cita algumas personagens pelos corredores e cômodos da literatura do grande escritor.
As duas primeiras, o amor adolescente e o amor maduro de Brás Cubas, respectivamente, e a terceira, o grande amor de Bentinho em Dom Casmurro.
Pois se “o diabo joga dama com o destino, / estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro, / que resolves em mim tantos enigmas”, justifica Drummond o motivo de sua visita.
Acima, provavelmente a última foto do “bruxo”, publicada na edição da revista semanal argentina Caras y Caretas, de 25 de janeiro de 1908, encontrada pelo pesquisador Felipe Pereira Rissato em 2018, na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional de España, que estampa uma breve matéria sobre Homens ilustres do Brasil.
Hoje, 185 anos de nascimento do imenso Machado de Assis.
“Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro”, como disse Drummond no poema. Um verso-epitáfio.
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