terça-feira, 25 de junho de 2024

sobre viver

Foto: Beatriz Boblitz

Ana Marlene, atriz cearense. 60 anos de idade, 45 de teatro e cinema. Criou o grupo Trupe 'Caba de Chegar, um dos mais importantes nas artes cênicas de rua. Ruas de Fortaleza, ruas do interior, ruas do Brasil, por onde passar.
O trecho abaixo é de uma entrevista publicada sábado passado no caderno de cultura (é, ainda existem esses cadernos, minguados, ralos...) Vida & Arte do jornal (físico, sabe-se lá como!) O Povo, de Fortaleza.
Ana Marlene fala da sobrevivência na e para arte ao longo desse tempo. Passou por um delicado problema de saúde e celebra a vida na volta aos palcos num monólogo, Egoísta, onde conta a história de uma mochileira, inspirada na vida de Josefa Feitosa, pelo mundo em combate ao etarismo. Um texto necessário numa atuação divertida, alegre, porque o riso é revolucionário. Atitude íntegra de quem não se entrega.
O que Ana Marlene diz em sua entrevista reflete o que nós artistas, de todas as áreas, passamos sobre viver e sobreviver.

segunda-feira, 24 de junho de 2024

São João, Xangô Menino


Na fé cristã hoje celebra-se o nascimento de João Batista, aquele que não somente previu o advento do Messias na pessoa de Jesus, como teve a prerrogativa de batizá-Lo. Pelas Escrituras, Batista nasceu apenas seis meses antes de Cristo.
Juntamente com Antonio e Pedro, João compõe a tríade dos Santos Populares. O título desta postagem é da música de Gilberto Gil e Caetano Veloso, gravada no disco Doces Bárbaros – ao Vivo, 1976.
Os autores, de maneira livre, alegre e criativa, incorporam na letra o imaginário religioso, em combinação sincrética do local à transcendência da religiosidade cristã e o mito africano. Uma saudável manifestação de panteísmo múltiplo, com suas simbologias e expressões culturais.
Acima, reprodução do belíssimo quadro Nascimento de São João Batista, do pintor italiano Tintoretto, 1578. A obra encontra-se no Museu Hermitage, em São Petersburgo.


 

sexta-feira, 21 de junho de 2024

o morador da casa 18

“Convicções novas rondavam-lhe o espírito, impondo-lhe o dever de penitenciar-se de um pecado tão grave quanto fora grande a delícia que nele sentira – o pecado de haver mergulhado os sentidos e o pensamento nos perigosos filtros que o bruxo do Cosme Velho sabia propinar com arte sorrateira e amável.”
- Trecho do livro Letras da província, do ensaísta e crítico gaúcho Moysés Vellinho (1901-1980). No exemplar numerado que tenho, 1452 A, de 1944, Edição da Livraria do Globo, Porto Alegre, está na página 46.
A obra rara se divide em capítulos, cada um dedicado a um escritor de sua terra, entre eles Érico Veríssimo, Dionélio Machado, Vianna Moog.
O texto que destaco é sobre o jornalista, ensaísta, poeta, memorialista e folclorista Augusto Meyer (1902-1970), um dos pioneiros do Modernismo no Rio Grande do Sul. Meyer era um estudioso da obra de Machado de Assis, e escreveu um dos livros mais importantes sobre o escritor, Machado de Assis, outra preciosidade, de 1935. E justamente por ser um machadiano compulsivo, que Moysés Vellinho discorre o ensaio comparando - de certa forma elogiando - a escrita de Meyer com a “arte sorrateira e amável” do “bruxo de Cosme Velho”, referindo-se ao ilustre morador da casa número 18 da rua que tem o mesmo nome no bairro carioca.
Portanto, a primeira vez que Machado de Assis foi assim referenciado, tornando Moysés Vellinho o autor do epíteto, e não Carlos Drummond de Andrade, a quem é atribuído o crédito, numa leitura apressada que fizeram do seu poema A um bruxo, com amor, publicado no jornal Correio da Manhã, em 1958, e no ano seguinte no livro Poemas, pela José Olympio Editora.
O próprio Drummond, em uma crônica no mesmo periódico, na edição de 11 de setembro de 1964, esclareceu que “Devo reconhecer (...) que não me cabe a paternidade da apelação 'bruxo do Cosme Velho’, dada a Machado de Assis”. No poema não existe sequer o termo junto. O autor menciona “bruxo” no título e num verso, e o logradouro no início: “Em certa casa da Rua Cosme Velho / (que se abre no vazio) / venho visitar-te”.
Claro, Drummond não foi contemporâneo de Machado. Quando este faleceu, em 1908, o poeta era um menino de seis anos, e esperava o cometa Halley passar nos céus de Itabira em 1910 para encantar-se de poesia.
Drummond em seu poema visita o universo machadiano no espaço sagrado que o autor habitava:
- com Marcela, “a rir com expressão cândida”;
- com Virgília, “cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida”;
- com Capitu, que tem os olhos “abertos como a vaga do mar lá fora”;
e dessa forma cita algumas personagens pelos corredores e cômodos da literatura do grande escritor.
As duas primeiras, o amor adolescente e o amor maduro de Brás Cubas, respectivamente, e a terceira, o grande amor de Bentinho em Dom Casmurro.
Pois se “o diabo joga dama com o destino, / estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro, / que resolves em mim tantos enigmas”, justifica Drummond o motivo de sua visita.
Acima, provavelmente a última foto do “bruxo”, publicada na edição da revista semanal argentina Caras y Caretas, de 25 de janeiro de 1908, encontrada pelo pesquisador Felipe Pereira Rissato em 2018, na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional de España, que estampa uma breve matéria sobre Homens ilustres do Brasil.
Hoje, 185 anos de nascimento do imenso Machado de Assis.
“Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro”, como disse Drummond no poema. Um verso-epitáfio. 

quarta-feira, 19 de junho de 2024

um artista brasileiro

Foto: Leo Aversa

"Quer vulgaridade e ignorância maiores que um marmanjo com acesso à educação e à cultura precisar de explicação, no século 21, sobre quem é Chico Buarque?", disse o escritor e jornalista Mário Magalhães, quando o cantor foi hostilizado, em 2015, por um grupo de rapazes, ao sair de um restaurante no Leblon, aos gritos de "Você é um merda!”, "Petista!", "Ladrão!
Em 2016, o funcionário de uma barbearia na Tijuca perdeu um cliente por falar mal de Chico Buarque, a quem chamou de "comunista".
Após ouvir que tocava Chico no rádio, o responsável pelo caixa perguntou: "Odeio comunista. Vocês se incomodam se eu tirar a música desse escroto?".
O já ex-freguês rebateu: "Você acaba de perder um cliente. Intolerância política já é ruim. Cultural é pior ainda!"
Sobre todos esses ataques destes tempos da indelicadeza, Chico Buarque disse, com seu cavalheirismo habitual, que “Acho que vou começar a usar esses fones na rua. Gosto de caminhar e, por onde caminho, nos bairros chiques do Rio, as pessoas finas passam com seus carros grandes e gritam: 'Viado filho da puta!', 'Viado, vai pra Cuba', 'Vai pra Paris, viado'. O único consenso é o 'viado'”.
Na contramão da legião de bestas quadradas, da corja ignara institucionalizada, dos idiotas inúteis olavistas, o cantor, compositor e escritor ganhou o Prêmio Camões 2019 pelo conjunto da obra, já dono de três Jabutis em sua coleção de honrarias literárias.
O prêmio português, outorgado quando no Brasil vivíamos a página infeliz de nossa história do desgoverno da alma sebosa, Chico Buarque só recebeu quatro anos depois, em março de 2023, em solenidade no Palácio de Queluz, em Lisboa, das mãos dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Marcelo Rebelo de Sousa, de Portugal.
Chico Buarque, 80 anos hoje. Parabéns! Continuamos com sua banda cantando coisas de amor.

terça-feira, 18 de junho de 2024

a cena final


Os atores Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimée. Os personagens Jean-Louis e Anne Gauthier. Ele, viúvo, ela também. Um encontro casual se casualidade existisse. Novos encontros em fins de semanas que existem. Ela perde o trem, ele dá carona. Eles se tornam amigos, eles se apaixonam, eles se tornam amantes. A música de Francis Lai, Vinicius e Baden.

Um homem e uma mulher (Un homme et une femme), de Claude Lelouch, 1966.
Quatro décadas e os aplicativos dos corações das pessoas se atualizam a cada take de cada dia. Quando lembramos do filme, quando revemos os encontros. O real de encontro à ficção e de volta ao real. E o cinema na transversal do tempo eternizando os encontros.
Anouk Aimée partiu hoje num trem para as estrelas. Tinha 92 anos e uma eternidade em nossos nativos corações em mais de 70 filmes.
Lelouch escreveu ao receber a notícia que “Ela deu-me todas as minhas chances e disse sim quando, jovem cineasta, outros disseram não. Por causa dela e só dela, eu guardei a luz. Sua silhueta e graça ficarão gravadas para sempre numa praia da Normandia.”
A cena final: a câmera gira, o mundo também.

domingo, 16 de junho de 2024

Ariano e sua sina


Foto Arquivo VEJA

Ele toma conta do mundo pelo brilho nas palavras, pela lucidez da oratória, pela inteligência e acuidade de suas opiniões e argumentos, pela graça e humor de suas colocações, pela pureza infantil no rosto de senhor, pelo amor que tem pela arte na sua mais sagrada essência, pelas histórias narradas entre a verdade e o que poderia ter sido.
Ariano Suassuna é autêntico, genuíno, legítimo. É autor de si, é personagem de si. É mítico e é real. É clássico e usual. É novo e é histórico.
É rebento nascido nas dependências do Palácio da Redenção. É um senhor dos castelos erguidos nas fábulas dos sertões nordestinos.
É um dom Quixote de Taperoá, cidade nos cafundós da Paraíba, que o acolheu menino sem pai nos anos 30 da Revolução.
É Armorial em seus movimentos eruditos nos ritmos populares de dança, canções e picadeiros.
É João Grilo pícaro invencível vindo dos contos portugueses para as páginas dos cordéis no meio das feiras. É Chicó dizendo verdades com as mentiras para o padeiro avarento na Irmandade das Almas. É Quaderna descendente de legítimos reis envolvido em luas e defesas políticas no reino encantado de Belmonte.
É um sebastianista em quem acreditamos para nos salvar da miséria intelectual.
Hoje, 97 anos de nascimento desse cabra que já foi ao encontro de Caetana, mas continua em nossa Pedra do Reino. 

sábado, 8 de junho de 2024

o fim, o início e o meio


“Há uma teoria que diz que se um dia alguém descobrir exatamente qual é o propósito do Universo e por que ele está aqui, ele desaparecerá instantaneamente e será substituído por algo ainda mais bizarro e inexplicável. Há uma outra teoria que diz que isso já aconteceu.”
Trecho inicial de O restaurante no fim do mundo, aventura de ficção científica escrita pelo inglês Douglas Adams, lançada em 1980, pela Serious Productions Ltda. No Brasil pela Editora Arqueiro, 2018.
De fino humor nonsense, o livro é o segundo volume da série O guia do mochileiro das galáxias.
A ilustração acima foi criada pela The Imaginary Foundation, 2011, inspirada na foto, igualmente nonsense, de Rodney Smith, EUA, 1994.