Foto UOL Notícias
Um centauro em pleno século 20, filho de imigrantes russos judeus no interior do Rio Grande do Sul. Um ser metade homem, metade cavalo; culto, inteligente; vivendo, por motivos óbvios, excluído da sociedade. Um isolamento forçado, até decidir-se por mostrar-se quem é, o que pode fazer de bem para todos, enfrentando as discriminações.
O mitológico personagem central, Guedali, em sua singularidade irreal e quimérica, da pacata família Tartakovsky, vindo da pequena cidade Quatro Irmãos (que existe), conduz a leitura de uma forma que conseguimos aceitar naturalmente tais elementos bizarros, ilógicos, pela força que a fábula representa na dualidade da vida em sociedade, pela urgência de harmonizar individualismo e coletividade.
O recurso do escritor gaúcho em colocar seu personagem lendário em tempo e espaço reais, é o grande desafio pela profundidade da narrativa provocadora. Não se espantaria se alguém após a leitura encontrasse um centauro em algum jardim, rua, praça... Eu o encontrei 44 anos depois quando vi nesta semana a foto do cavalo ilhado sobre um telhado de uma casa em Canoas, uma das 441 cidades gaúchas inundadas pelas fortes chuvas no estado.
A cena me remeteu ao livro de Scliar pelo simbolismo que representa na maior tragédia climática da história do sul do país, com quase 200 mortos, milhares de desabrigados, centenas de desaparecidos.
O cavalo ilhado é espanto e nobreza. O medo naquela estátua de carne, músculos e crinas sem desfazer a essência da força e elegância. Como o centauro do romance, despertou a reflexão para dualidade e igualdade entre animais e humanos, arrastados não somente pelas adversidades da natureza, mas desventura de nós seres ditos racionais.
Caramelo, como foi batizado depois de salvo, mostrou-se quem é. Atravessou da fábula ao realismo, trazendo em seu gesto de isolamento forçado, a insígnia dos que possuem uma conexão íntima com o meio ambiente. O mesmo onde o homem habita e desabita, planta e desmata, explora e nega.
Moacyr Scliar, com mais de 60 obras publicadas, entre romances, contos, crônicas, ficção infantojuvenil e ensaios, conciliava sua carreira com a medicina, especializado em saúde pública. Estava ali muito bem representado nas equipes que socorriam a população e o cavalo Caramelo.
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