sexta-feira, 24 de maio de 2024

aquela casa não existe mais


Foto: Agência Brasil/EBC

Há uma fala do personagem John Rivers, logo na abertura do romance O gênio e a deusa (1955), de Aldous Huxley, em que diz que “O problema da ficção é que ela faz muito sentido. A realidade nunca faz sentido (...) A ficção tem unidade, a ficção tem estilo. Os fatos não têm nem uma coisa nem outra. Grosso modo, a existência se resume a uma desgraça após a outra...”
Lembrei-me desse trecho depois que li hoje pela manhã o comovente, doloroso, mas resiliente (palavra recorrente e necessária nestes tempos), texto da escritora gaúcha Julia Dantas, Caminhar na lama, em sua página na Internet, ao descrever tudo que sentiu ao entrar em sua casa depois de dez dias da inundação que devastou grande parte de Porto Alegre. Julia mora no bairro Menino Deus, um dos mais atingidos pelas águas do Guaíba.
“A primeira surpresa é o quanto tudo fica fora de lugar. Existem muito mais coisas flutuantes dentro de uma casa do que eu supunha”, relata a escritora. E passa a detalhar o cenário arrasado do que foi sua morada, o orgânico que é nossa carne e espírito cotidianos: a geladeira caída, os frascos do banheiro na sala, os móveis encharcados, as estantes de livros que caíram sobre si mesmas como implodidas, as roupas, os calçados... tudo que “agora se chama entulho” para colocar na rua, “pois os caminhões passarão à noite” para recolher.
Quando peguei o livro de Huxley na estante e reli o trecho acima, fui movido por uma analogia inversa a essa tragédia que se abate sobre o Rio Grande do Sul. Uma reflexão com o peito compassivo, aqui tão longe tão perto. Esse cenário de destruição em filme distópico faria mais sentido, teria uma unidade no propósito de uma representação, teria um estilo como obra que se quer mostrar. O que acontece no estado gaúcho não tem uma coisa nem outra, não faz sentido a existência se resumir a uma desgraça após a outra, não pelas adversidades da natureza, mas desventura e descaso do poder público, pelo terraplanismo de visão conceitual de gestão dos que estão nos gabinetes.
“Eu poderia escrever mais quatro páginas sobre como tudo isso é também culpa da prefeitura e de políticos e gestores que sucatearam o departamento público de água e esgoto e deixaram de investir nos sistemas de prevenção. Mas vou guardar minha raiva para os próximos dias”, finaliza Julia Dantas, enquanto um mutirão de amigos esfrega as paredes sujas de lama com uma esponja com sapólio.
(O título da postagem é de uma fala da escritora Nathallia Protazio a Julia Dantas). 

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