domingo, 26 de maio de 2024

por trás da frase


Foto: daguerreótipo de Jacques-Ernest Bulloz, 1848

A edição de O chefão (1969), de Mario Puzo, lançada em 1996 pela Record, como parte da Coleção SuperSellers, abre com a epígrafe “Por trás de cada fortuna há um crime”, máxima atribuída ao grande escritor francês Honoré de Balzac, fundador do Realismo na literatura moderna.
Creio que a iniciativa tenha sido dos editores da Coleção, e não do autor italiano, pois em outras edições não consta essa abertura. O meu exemplar é de 1981, da Abril Cultural, e já inicia com o Capítulo I do Livro I (a obra de quase 500 páginas é dividida em 32 capítulos de nove tomos internos). A colocação e natureza dessa epígrafe deve-se, deduzo, ao sucesso da magnífica adaptação para o cinema na trilogia (1972-1974-1990) dirigida por Francis Ford Coppola, tanto é que o título da edição é O poderoso chefão.
Balzac não proferiu essa máxima. Pelo menos assim. O que conhecemos é um erro histórico de tradução que se estende há quase dois séculos. A frase original está no romance O pai Goriot, de 1835, que integra a magnum opus A Comédia Humana. Quem diz é o personagem vilão de dupla identidade, Vautrin/Jacques Collin. Na página 89 ele fala para o jovem Eugène de Rastignac:
“O segredo das grandes fortunas sem causa aparente é um crime esquecido, porque foi cometido com limpeza.”
Portanto, refere-se a uma riqueza inexplicada e não às fortunas em geral, assim entendo.
Fui atrás do original em francês, Le pére Goriot (La Bibliothèque Électronique du Québec, 2010), para fundamentar estas considerações.
Balzac, ou seja, Vautrin, diz lá na sua língua:
“Le secret des grandes fortunes sans cause apparente est un crime oublié, parce qu’il a été proprement fait.”
Uma amiga francesa verteu para o português e é exatamente como está na edição brasileira da Companhia das Letras, 2015, na ótima tradução de Rosa Freire D’Aguiar.
Esse engano da máxima atribuída a Balzac, e mais do que nunca disseminada no impulso das redes sociais, é o mesmo de “Os fins justificam os meios”. Maquiavel disse de outra maneira, totalmente diferente, em O Príncipe. Mas isso fica para outra postagem.
De quem partiu a tradução errada, não se sabe. "Crime esquecido, porque foi cometido com limpeza".

sexta-feira, 24 de maio de 2024

aquela casa não existe mais


Foto: Agência Brasil/EBC

Há uma fala do personagem John Rivers, logo na abertura do romance O gênio e a deusa (1955), de Aldous Huxley, em que diz que “O problema da ficção é que ela faz muito sentido. A realidade nunca faz sentido (...) A ficção tem unidade, a ficção tem estilo. Os fatos não têm nem uma coisa nem outra. Grosso modo, a existência se resume a uma desgraça após a outra...”
Lembrei-me desse trecho depois que li hoje pela manhã o comovente, doloroso, mas resiliente (palavra recorrente e necessária nestes tempos), texto da escritora gaúcha Julia Dantas, Caminhar na lama, em sua página na Internet, ao descrever tudo que sentiu ao entrar em sua casa depois de dez dias da inundação que devastou grande parte de Porto Alegre. Julia mora no bairro Menino Deus, um dos mais atingidos pelas águas do Guaíba.
“A primeira surpresa é o quanto tudo fica fora de lugar. Existem muito mais coisas flutuantes dentro de uma casa do que eu supunha”, relata a escritora. E passa a detalhar o cenário arrasado do que foi sua morada, o orgânico que é nossa carne e espírito cotidianos: a geladeira caída, os frascos do banheiro na sala, os móveis encharcados, as estantes de livros que caíram sobre si mesmas como implodidas, as roupas, os calçados... tudo que “agora se chama entulho” para colocar na rua, “pois os caminhões passarão à noite” para recolher.
Quando peguei o livro de Huxley na estante e reli o trecho acima, fui movido por uma analogia inversa a essa tragédia que se abate sobre o Rio Grande do Sul. Uma reflexão com o peito compassivo, aqui tão longe tão perto. Esse cenário de destruição em filme distópico faria mais sentido, teria uma unidade no propósito de uma representação, teria um estilo como obra que se quer mostrar. O que acontece no estado gaúcho não tem uma coisa nem outra, não faz sentido a existência se resumir a uma desgraça após a outra, não pelas adversidades da natureza, mas desventura e descaso do poder público, pelo terraplanismo de visão conceitual de gestão dos que estão nos gabinetes.
“Eu poderia escrever mais quatro páginas sobre como tudo isso é também culpa da prefeitura e de políticos e gestores que sucatearam o departamento público de água e esgoto e deixaram de investir nos sistemas de prevenção. Mas vou guardar minha raiva para os próximos dias”, finaliza Julia Dantas, enquanto um mutirão de amigos esfrega as paredes sujas de lama com uma esponja com sapólio.
(O título da postagem é de uma fala da escritora Nathallia Protazio a Julia Dantas). 

domingo, 19 de maio de 2024

aplausos ao cineasta


Foto: acervo Teste de Audiência

O ótimo filme Comédia Divina, de Toni Venturi, lançado em 2017, livremente adaptado do curtíssimo conto de Machado de Assis, A igreja do diabo, traça uma bem-humorada crítica à eterna discussão entre o bem e o mal, entre céu e inferno, entre o que aceitamos como Deus e o que negamos como diabo. Ou vice-versa. Ou de uma forma mais machadiana mesmo, o que é fé enquanto pensamos que é religião.

Protagonizado por Murilo Rosa, fazendo um capeta garboso, sedutor, ardiloso, como compete a essa entidade do imaginário (ou do real) popular, ameaçado pelos humanos muito chegados à bondade e outras virtudes, o diabo resolve subir à Terra com sua equipe e fundar sua própria igreja para derrubar a "concorrência" divina, e assim aumentar sua legião de infiéis. Qualquer semelhança não é mera coincidência.
Toni Venturi ambienta seu filme nos tempos atuais, insere elementos contemporâneos na narrativa, cenários high tech, trilha sonora pauleira, gírias. Mesmo correndo o risco de se distanciar do texto original, consegue manter a essência que o grande escritor questiona: a contradição humana.
Assisti ao filme em 25 de agosto de 2015, na Caixa Cultural Brasília, numa sessão do excelente projeto criado pelos cineastas brasilienses Márcio Curi (1947-2016) e Renato Barbieri, Teste de Audiência. As exibições, também programadas na Caixa Belas Artes São Paulo, testavam produções em fase de finalização. Esse saudável e estimulante tipo de aferição, com a apresentação dos filmes e a presença do diretor, tanto oferece aos cineastas questionar pontos importantes em seus trabalhos, visando falhas e acertos, eficácia na divulgação e na estratégia de lançamento, quanto uma formação de plateia que reflete a partir dessa primeira visão privilegiada. A metodologia torna-se uma parceria entre público e diretores. Muitos filmes quando foram lançados tinham as impressões dessas experiências, de forma positiva, desde cortes de cenas à escolha de modelos de cartazes, depois da votação da plateia em questionários após as sessões. Lamentavelmente o projeto está parado desde 2018.
Naquela noite Toni Venturi encantou a plateia pela delicadeza, humildade e atenção a todas pontuações feitas, no debate após a exibição. Postura proporcional ao seu vasto conhecimento, talento e dedicação ao cinema, manifestados no curioso caso de amor de Latitude zero (2002); Cabra cega (2005), um contundente recorte sobre jovens militantes na Ditadura Militar; os precisos documentários O velho - A história de Luiz Carlos Prestes (1997) e Rita Cadillac - A lady do povo (2010), para citar alguns exemplares de sua rica filmografia.
Acordei neste domingo com a notícia da morte de Toni Venturi, ontem, aos 68 anos, depois de sentir-se mal enquanto nadava numa praia do litoral paulista, onde passava o fim de semana com a família. Dos poucos, mas intensos encontros que tive com ele, o da exibição de Comédia Divina foi o que mais me marcou, justamente pelas qualidades de artista, amigo e ser humano que vi naquela noite, sua generosidade em ouvir todos os apontamentos ao filme, sua disponibilidade e sorrisos nas conversas nos corredores da Caixa Cultural.
Venturi disse-me que cada filme que realizava o fazia confessadamente direcionado às grandes plateias. Todos que têm seus filmes na memória afetiva o aplaudem, como fez a sala lotada naquela noite em Brasília. O cinema brasileiro o aplaude.

sábado, 11 de maio de 2024

o centauro no telhado


Foto UOL Notícias

Um centauro em pleno século 20, filho de imigrantes russos judeus no interior do Rio Grande do Sul. Um ser metade homem, metade cavalo; culto, inteligente; vivendo, por motivos óbvios, excluído da sociedade. Um isolamento forçado, até decidir-se por mostrar-se quem é, o que pode fazer de bem para todos, enfrentando as discriminações.

Um resumo do romance de realismo fantástico O centauro no jardim, de Moacyr Scliar (1937-2011), que li no fôlego de um galope no ano de sua publicação, 1980.
O mitológico personagem central, Guedali, em sua singularidade irreal e quimérica, da pacata família Tartakovsky, vindo da pequena cidade Quatro Irmãos (que existe), conduz a leitura de uma forma que conseguimos aceitar naturalmente tais elementos bizarros, ilógicos, pela força que a fábula representa na dualidade da vida em sociedade, pela urgência de harmonizar individualismo e coletividade.
O recurso do escritor gaúcho em colocar seu personagem lendário em tempo e espaço reais, é o grande desafio pela profundidade da narrativa provocadora. Não se espantaria se alguém após a leitura encontrasse um centauro em algum jardim, rua, praça... Eu o encontrei 44 anos depois quando vi nesta semana a foto do cavalo ilhado sobre um telhado de uma casa em Canoas, uma das 441 cidades gaúchas inundadas pelas fortes chuvas no estado.
A cena me remeteu ao livro de Scliar pelo simbolismo que representa na maior tragédia climática da história do sul do país, com quase 200 mortos, milhares de desabrigados, centenas de desaparecidos.
O cavalo ilhado é espanto e nobreza. O medo naquela estátua de carne, músculos e crinas sem desfazer a essência da força e elegância. Como o centauro do romance, despertou a reflexão para dualidade e igualdade entre animais e humanos, arrastados não somente pelas adversidades da natureza, mas desventura de nós seres ditos racionais.
Caramelo, como foi batizado depois de salvo, mostrou-se quem é. Atravessou da fábula ao realismo, trazendo em seu gesto de isolamento forçado, a insígnia dos que possuem uma conexão íntima com o meio ambiente. O mesmo onde o homem habita e desabita, planta e desmata, explora e nega.
Moacyr Scliar, com mais de 60 obras publicadas, entre romances, contos, crônicas, ficção infantojuvenil e ensaios, conciliava sua carreira com a medicina, especializado em saúde pública. Estava ali muito bem representado nas equipes que socorriam a população e o cavalo Caramelo.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

uma parte da tragédia



Ó céus de Porto Alegre,
Como farei para levar-vos para o Céu?!

- Mário Quintana, 1976

Livraria Taverna
Casa Mário Quintana
Centro Histórico de Porto Alegre, 2024
 

segunda-feira, 6 de maio de 2024

a palavra no labirinto

“palavra e ar: palavrar / eu sei de cor”, diz a poeta cearense Meire Viana em um dos poemas iniciais de Palabirinto – Experimentos poéticos. Lançado em fevereiro passado (Editora Radiadora), o livro é uma preciosidade no domínio de captação e construção das palavras para expressar o anímico. Os versos acima é conhecimento com a matéria-prima da poesia, afirmação do que ela é capaz de fazer com as “metáforas / em chamas” de sua escrita.

Adentramos com o fio desse novelo de lã vermelho-vinho do delírio que Meire coloca em nossas mãos, como uma Ariadne que nos quer de volta. “Se encontrar saída, me diga”, provoca-me a autora na dedicatória. Como não é para encontrar-se, o jogo e a sina é ficar circulando nos labirintos dos versos. E ao caminhar, quando dobro a esquina de cada folha, deparo-me no espelho do “pra fora calo / pra dentro falo”.
Sei que tenho sua mão trovadora segurando o fio, auscultando meu coração de poeta, para que, mesmo perdido, “me acho / riacho correndo por dentro”. Terseu que somos lendo experimentos para eliminar o Minotauro de nossas inquietações existenciais que vive nessa indevassável ilha Creta da vida, na arquitetura dos dias emaranhados dos Dédalos de cada um de nós.
Os poemas são leves, de asa ceciliana ritmada, porque Meire resolveu “juntar lírico com onírico” e cada verso determinante em neologismo “deu onilírico / o oniilismo do poematriz”, como inventando caminhos na tentativa de descobrir saída. Poemas sem títulos porque é um fio “para de um sopro ler sôfrego de um fôlego só”. Formato, técnica e essência numa estrutura que se aproxima do concretismo, sem perder o rumo “sobre almofadas de nuvem imaginária”. A poeta segue, em referências e reverências, de prumo original, “pelo avesso / sina essa / ida / vinda / vidavessa”, pois “a dor dorme e não sente / dormentesentedormentesente”.
Sublinho com as retinas os versos que escreveria, “repousando o braço da vírgula num canto”. Tudo é linha nessa leitura. Tudo é linho nesse tecido. Tudo é lida nesse livro. Desenho que mapeia o peito. Costura que trata feridas. Trabalho que traz urgências. Na organização do caos poético que se estampa no produto, os poemas curtos nas páginas finais são acenos para voltar, não de despedida, mesmo que “entre o diante / e o distante / o receio do instante”. 

sexta-feira, 3 de maio de 2024

a rua


                                                                      Foto: Raphael Lucas


Da janela olhei debruçado
a história explodindo na rua Firmino Rosa:
o disparo no presidente em Dallas
os tanques de 64 vindo de Minas
dom Fragoso chegando da Paraíba
:
manchetes do mundo no beco da província
e o menino guardando tudo
para o poema no futuro do presente:
um take de Oliver Stone
um arquivo de Sílvio Tendler
um frame de De Sica.
- Trecho do meu livro Trem da memória (Editora Radiadora, 2022).
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À venda pelo site www.radiadora.com.br e com o autor.
Em Fortaleza: Livraria Leitura (Shopping Iguatemi) e Livraria Arte E Ciência (av. Treze de Maio, 2400).
Em Brasília: Livreiro da 214 Norte (SCLN 214 - Bloco C - loja 64) e
Sebo do Ismar (216 Norte, Feira da Ponta Norte).