quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

pretérito


Do lado fronteiriço do pai
meu avô João
com um canivete esculpia palitos para os dentes
com lascas do cercado trazidas do curral
onde o boi mugia no final da tarde
a tarde que intendia o alpendre
o alpendre que estendia meu olhar
o meu olhar que entendia meu avô
e os fiapos de madeira pelo chão
e as réstias da tarde pelo vão
e os palitos no colo do avô João.
Entre o velho e o menino:
os palitos,
a tarde
e o coração.
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Do meu livro "Trem da memória" (Editora Radiadora, 2022)
À venda pelo site www.radiadora.com.br e com o autor.
Desenho: Fausto Nilo


 

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

o confidente de Licária


 Em pleno início da pandemia, o poeta cearense Clauder Arcanjo estava em Vitória (ES) a trabalho. Confinado em um hotel, durante três meses passou a ler e e screver para não enlouquecer. Nessa clausura sanitária e intelectual, Arcanjo revisitou obras de quase 30 escritores. De Clarice Lispector a Emily Dickinson, de Walt Whitman a Ferreira Gullar, de Hilda Hirst a Cecília Meireles, de Fernando Pessoa a Carlos Drummond de Andrade, de Mário Quintana a Vinicius de Moraes, de Miguel de Cervantes a Eugênio de Andrade, de Cora Coralina a Manoel de Barros, e mais Adelia Prado, Manuel Bandeira, Beatriz Alcântara, Helena Kolody...

Dessas releituras, Clauder escreveu sobre cada um deles. Paria três textos por semana. E dialogava com os autores destacando trechos de seus livros em sintonia com seus sentimentos, suas inquietações e reflexões. O resultado desse período de exilio na solidão de um quarto de hotel, é o livro Confidências literárias (Sarau das Letras Editora, 2021), de uma originalidade e preciosidade como raramente vi na literatura brasileira contemporânea. O seu texto em prosa, num misto de ensaio analítico e crônica existencial, é de uma poética cativante. Os versos que ele destaca, numa intextualidade cuidadosa, se unem organicamente com o que ele escreve, um auscultando o coração do outro.
E domingo passado fui surpreendido como mais um poeta com quem ele se confidencia, a partir da leitura do meu livro Trem da memória (Editora Radiadora, 2022). Clauder Arcanjo publicou nosso encontro memorialista no jornal O Mossoroense, onde é articulista. São textos que ele reúne para uma próxima edição de Confidências.
Como todo grande poeta e seus berços referenciais, Arcanjo é originário da cidade Licária, como Bandeira foi para Pasárgada, Gabriel García Márquez morou Macondo, Drummond veio de Itabira. Honra-me passar uns dias em Licária, lá sou amigo de Arcanjo.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

insumos


Não foi o deus do alto da matriz
quem deu asas a minha imaginação
nem foi o padre Bomfim
(com sua mão branca de pelos escuros
que me obrigavam a beijar
quando ele apontava no começo da rua)
muito menos o padre Irismar
(com seu rosto largo de pele vermelha
que me abrigava o olhar
quando desapontava no fim da rua)
não foram eles
a quem nunca deixei meus pecados
atravessarem as treliças do confessionário.
Pecados: pecados: pecados:
os seios
das tias de perto
que o menino via
refletidos no espelho do provador
as coxas
das cutruvias de longe
que o menino ouvia
espelhadas no reflexo dos homens
e mentia que a culpa-minha-máxima-culpa
era ter fabulado para a avó
e isso não se faz
seja a última vez
e tomem intermináveis
três pais-nossos deles
três ave-marias minhas
:
ato de contrição cabisbaixo
genuflexo
postulado
em frente aos gessos santificados
e seus olhinhos punitivos.
Não, não foram eles
seres comuns de batinas pretas
atravessadores de minha fé
não foram
foram as mãos dadas com Drummond
as folhas finas da Seleções
as curiosidades do Capivarol
foram as fitas do cine Poty
as canções da radiadora
a Hora do Brasil nas válvulas do ABC
foram as notícias do tio da capital
as conversas na calçada alta
os trancosos da prima gorda
foi o olhar sem fim de tanto imaginar
que me deu asas
sobre os telhados
os algodões
as carnaúbas
e me fez ver o mar.
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Do meu livro Trem da memória (Editora Radiadora, 2022)
À venda pelo site www.radiadora.com.br e com o autor. 

domingo, 18 de fevereiro de 2024

o caminho a seguir



- Podes dizer-me, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?

- Isso depende muito de para onde queres ir - respondeu o gato.

- Preocupa-me pouco aonde ir.

- Nesse caso, pouco importa o caminho que sigas - replicou o gato.

Lembrei-me desse diálogo de Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, saindo da cidade de Guaramiranga, Ceará, em 2015, depois do Festival de Jazz & Blues, ao ver dois gatos na janela de uma casa. Fotografei como Alice perguntasse. Ou perguntei como Alice os fotografasse.

No livro, a personagem ao fazer a pergunta ao Gato de Cheshire, o autor desconstrói qualquer intencionalidade de interpretação literal. As alusões são filosóficas em toda narrativa, e o felino sorridente é um dos poucos que têm um diálogo com a menina, de forma que ela perceba as reflexões necessárias.

Descendo a serra, deixando o frio para trás, caí morro abaixo em mim, dentro de reflexões sobre que caminhos realmente queremos, sabemos e seguimos, depois que estivemos na toca do coelho e nos encantamos com seres antropomórficos, em situações que, por algumas horas, largamos preocupações, saudades, amores idos, desejos, esperanças... 

Estamos sempre indo ao encontro do que supomos guardado como solucionado. Ou me preocupo aonde ir ou pouco importa o caminho que sigo. 

sábado, 17 de fevereiro de 2024

o iracundo

Foto: Acervo Fundação Darcy Ribeiro

Com seus direitos políticos cassados e obrigado a se exilar em 1968, Darcy Ribeiro estava em Portugal em 1974 quando foi diagnosticado com câncer no pulmão. O governo Geisel autorizou seu retorno para fazer tratamento. O antropólogo enfrentou a doença, foi eleito vice-governador do Rio de Janeiro na chapa de Leonel Brizola, em 1982, iniciou seu mandato como senador pelo PDT em 1991, e no ano seguinte imortal na Academia Brasileira de Letras.
A doença se agravou nos anos 90. Mas Darcy sempre altivo, ardoroso defensor de suas ideias, encantando com sua oratória. Cruzei com ele uma vez pelos corredores do Congresso bradando que o presidente Fernando Henrique tomasse uma decisão digna e não privatizasse a Vale do Rio Doce. Outro momento marcante que vi foi quando, já debilitado, apareceu em uma cadeira de rodas no plenário do Senado, em fevereiro de 1997, para a eleição do presidente da Casa.
Darcy dizia que os escritores se dividem em dois grupos, os áulicos e os iracundos, e que com muita alegria se colocava na segunda lista. Os aúlicos são os que vivem à sombra do poder, com ideias verdadeiras, mas irrelevantes, que não deixam nenhuma marca no mundo. Os iracundos são intelectuais indignados, desafiadores, que não se limitam a ilustrar com exemplos do Hemisfério Sul as teorias importadas do Hemisfério Norte. No primeiro encontro aproximei-me dele, estendi-lhe o braço e disse que queria muito apertar a mão de um iracundo. Ele sorriu e me deu um abraço.
Uma semana depois da votação, Darcy foi internado, apresentando fortes problemas respiratórios. Após fazer os exames, chamou a médica que lhe assistia e disse que estava com vontade de dar aula, e que lhe trouxesse uma criança. Horas depois, ali no leito, Darcy deu aula a uma menina de 9 anos. Falou sobre o Brasil, sobre a importância de respeitar todas as culturas. Falou sobre escolas e sambódromos.
Era madrugada do dia 17 de fevereiro de 1997 quando disse à enfermeira que queria fazer a barba, vestir-se e participar do seminário sobre seu Projeto Caboclo, que acontecia num hotel. Diante a lucidez de seu amor pelo Brasil e o delírio de atravessar as limitações de suas forças físicas, a equipe médica o convenceu o contrário. Amanhecia quando foi levado às pressas a um leito da UTI. Faleceu poucas horas depois, aos 74 anos.
Nunca o Brasil foi tão brasileiro na existência de Darcy Ribeiro. 

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

viagem a bordo do dragão

Foto: Acervo Centro Galego das Artes da Imaxe, Espanha

Julio Cortázar e a tradutora canadense Carol Dunlop se conheceram em 1977 e viveram uma das mais belas e intensas histórias de amor. Durante 1981 e 1982 moraram numa Kombi vermelha, e por 33 dias viajaram de Paris à portuária Marselha. Batizaram o automóvel de Fafnir, referência ao poderoso e destemido anão da mitologia nórdica, que vira dragão, é morto pelo guerreiro Siegfrield, que bebe o seu sangue para entender o que dizem os pássaros e come o coração para ter o dom de sua sabedoria.
Vou à estante e pego Os autonautas da cosmopista, escrito por Cortázar e Carol nesse trajeto. Releio alguns trechos. Com o subtítulo “Ou uma viagem atemporal Paris-Marselha”, é uma espécie de diário a quatro mãos. Fotografias, descrições da flora e da fauna, situações perigosas e misteriosas com espiões e bruxas, predominam na escrita surpreendente.
Publicado em 1983, a primeira edição numa curiosa encadernação rústica, como cartapácio encontrado no bojo metálico de Fafnir. O meu exemplar é apenas um tomo, da Editora Brasiliense, 1991. Brochura customizada pelo tempo que foi numa viagem que não fui e eles me contaram. Paravam nos parques para comer e escrever, eu pauso nas margens das páginas para sublinhar e fazer anotações.
Em agosto de 1981 Cortázar teve uma hemorragia gástrica e precisou ser hospitalizado por alguns dias. Em novembro de 1982 Carol Dunlop morre, diagnosticada com insuficiência na medula óssea. Há outra versão sobre a causa. Teria sido pelo vírus da AIDS, contaminada por Cortázar, que fizera uma transfusão de sangue no hospital. Cortázar faleceu em 12 de fevereiro de 1984, de leucemia.
Mútuos amantes, absorveram em suas veias o sangue de Fafnir para falarem o idioma dos pássaros e se alimentarem da carne anímica da sabedoria de seus corações. A vulnerabilidade da vida, para onde se vai por uma via supostamente conhecida; a certeza da morte, para onde se volta, por outra vereda definitivamente desconhecida. No livro, a narrativa lúdica e surreal no contrafluxo da infinitude, essa impressão que a estrada sempre nos dá numa viagem.
Fecho o livro e coloco de volta Fafnir na prateleira, esses passadiços horizontais em que se guardam dorsos verticais com histórias e tempo.

sábado, 10 de fevereiro de 2024

e pelas ruas vão te seguindo


Na tarde de sábado de carnaval de 1973, 17 de fevereiro, Alfredo da Rocha Vianna Filho, o grande Pixinguinha, veste o seu melhor e mais engomado terno de linho branco, e de sua casa, em Ramos, zona norte do Rio de Janeiro, segue para o batizado do filho de um grande amigo, na Igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema. Poucas horas antes de sair, recebeu a visita do compositor e produtor musical Hermínio Belo de Carvalho e do fotógrafo Walter Firmo.
O músico estivera adoentado naqueles últimos dias. Firmo, autor da clássica foto de Pixinguinha sentado numa cadeira de balanço, debaixo de uma mangueira em sua casa, com o saxofone no colo, de 1967, levara a máquina para algumas imagens, mas notou que o amigo não estava nada bem, muito abatido fisicamente. Preferiu preservá-lo e guardou o equipamento.
Mesmo com essas limitações, Pixinguinha atravessa a cidade entre alguns foliões, sereno e contente com o seu compromisso. Já se aproximando o final da cerimônia, logo após a criança receber a água benta, Pixinguinha afrouxa a gravata, passa o lenço na testa... começa a sentir-se mal. Em segundos cai, fulminado por um infarto. Tinha 75 anos.
A notícia se espalha rápido pelas ruas do bairro. Naquele momento cai um temporal na capital carioca. Ao saberem do ocorrido, os componentes da Banda Ipanema, que estavam próximos da igreja, sob o comando do lendário Albino Pinheiro, continuam o desfile e tocam Carinhoso entre lágrimas e chuva. Era a estreia da Banda. E dessa forma foi abençoada pelo santo Pixinga num improvisado enredo de reverência. O coração de todos batendo triste, numa alegoria pelas ruas com as cores dos confetes molhados se desmanchando.
Na manhã seguinte o corpo do músico segue para o Cemitério de Inhaúma, onde estava sua esposa, falecida há um ano. Um cortejo carinhoso de choros naquela transversal manhã de um domingo sem carnaval.
Ilustração: Elifas Andreato, para capa do disco Pixinguinha - Dez anos sem ele (Odeon, 1983). 

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

o dito cujo do mesmo


À parte a boa intenção e necessidade para a segurança de todos, o texto da placa acima é de um absurdo impressionante. A língua portuguesa despenca elevador abaixo, sem piedade.
Há três erros: dois de gramática e um de lógica.
Apertem o botão e vamos a eles. Subindo:
- "Mesmo" é desnecessário para substituir o termo referido, "elevador". O certo é o pronome “ele”. Em linguística é o que se chama de função anafórica, quando uma expressão se refere a uma outra que ocorre na mesma frase.
- O "se" no verbo “encontrar” está no lugar errado. Como é função subordinativa, funciona como um ímã, atraindo o verbo, devendo, portanto, estar antes dele. E mesmo assim, os dois são dispensáveis.
- Se o elevador não estiver no piso, naquele andar onde você está, como entrar nele?! O vocábulo "elevador" dessa forma não tem sentido.
A frase correta:
ANTES DE ENTRAR, VERIFIQUE SE O ELEVADOR ESTÁ NESTE ANDAR.
As palavras curtas são preferíveis às longas, economizam espaço e dão fluidez à leitura.
A plaquinha é resultado de uma lei distrital, de Brasília, número 3.112, de 2003. Não tinha um revisor naquele momento que visse a aberração no nascedouro? O pior é que o deputado federal paraense Raimundo dos Santos copiou a ideia e a frase, apresentou o projeto de lei ao Congresso, e, aprovado, tornou advertência obrigatória em todo o país.
E ficou por isso mesmo. Descendo.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

ausências

Foto: Acervo Alexander Filipowicz, 1985

O escritor morreu e deixou seu gato sozinho na vastidão do apartamento. O gato caminha entre livros, papeis, sobe na mesa, salta em direção ao corredor, olha em volta o que não mais volta. Tudo está igual, mas tudo está mudado, porque à noite a lâmpada não se acende mais. O gato ouve passos nas escadas, vieram lhe trazer comida. Mas aquela mão que coloca um peixe no pratinho não é a mão com as mesmas veias. As coisas deixaram de ser na hora e no olhar costumeiros. O cotidiano desapareceu, outro se modela.
O escritor morreu e o gato se revolta. Mia dizendo “Morrer – isso não se faz a um gato. / Pois o que há de fazer um gato / num apartamento vazio.”. O gato espera o escritor aparecer. “Vai aprender / que isso não se faz a um gato.” O gato caminha devagarinho, “sobre patas muito ofendidas.” Que se pode fazer agora? “Dormir e esperar”.
Com imaginação e personificação, a poeta polonesa Wislawa Szymborska escreveu o poema Gato num apartamento vazio, publicado no livro Fim e começo, de 1993. É dedicado ao romancista nascido na Áustria Kornel Filipowicz. Foi o grande amor de Szymborska durante quase três décadas. Conheceram-se no final dos anos 40, reencontram-se em 1967. Ela divorciada, ele separado. Não se casaram, não moraram juntos. Não precisava. “Éramos cavalos galopando um ao lado do outro", dizia ela. Trocaram uma imensidão de cartas, entre 1967 e 1985, que a editora espanhola Las Afueras compilou em livro, Escribe si vienes, inédito no Brasil.
O escritor faleceu no final de fevereiro de 1990, aos 80, seis anos antes de Szymborska ganhar o Nobel de Literatura, que ela dizia ter sido “o terremoto de Estocolmo” em sua vida, referindo-se em comparação de impacto à ausência do amado.
Hoje, 12 anos que Szymborska dormia em sua casa, em Cracóvia, quando não mais acordou. Tinha 88 anos.
Assim como o gato órfão de Filipowicz, um sentimento vagueia pelos livros em minha estante. Esses passadiços horizontais em que se guardam dorsos verticais de tempo. Olho. Como o felino antes do salto. Szymborska em minhas mãos. O tato de minhas retinas pelos corredores de cada página. E releio o poema. É o que se pode fazer agora.