quinta-feira, 14 de setembro de 2023

viagem a Creta


Na mitologia grega, Minotauro é aquele que tem corpo de homem e rosto e cauda de touro. Por ser um monstro que se alimenta de seres humanos, é preso em um labirinto, criado por Ídalo e Dédalo, por ordem do rei de Creta, Minos, para que lá se perca infinitamente. Essa sentença se explica mais pela atitude de revide: Minotauro é fruto de um interlúdio, digamos, um entreato da esposa do tal monarca cretense, Pasífae, com um touro que foi doado por Poseidon, o deus do mar, ao reino. De Athenas eram enviados belos rapazes e moças virgens para o cardápio do canibalismo atávico de Minotauro. Num desses despachos de humanos para serem devorados, chega Teseu, empenhado em matar Minotauro. O intento é concretizado com ajuda de Aríadne. Vitoriosos, os dois jovens heróis se apaixonam.

Esse verbete do enciclopédico e fascinante universo da mitologia grega tem desdobramentos e versões várias. Minha paixão por mitologia faria estender este texto, o que não cabe no momento. Apenas situei o resumo acima para apontar que o escritor Ricardo Kelmer, em assumida inspiração, colocou, surpreendentemente, elementos de personagens e contextos do mito de Minotauro em seu novo romance Minha doce vida perdida (Miragem Editora, 2023).
Componentes como deuses, heróis, seres sobrenaturais e demais criaturas trazidas da mitologia, são elementos interligados com fatos e características humanas existentes. A psicanálise pontua muito bem seus conceitos na mitologia. Mas a nossa praia lírica aqui é a literatura, que igualmente não obedece a regras de tempo, espaço e ação. A literatura na sua viagem de criar, recriar, e tudo que evidencia as funções essenciais catártica, estética, cognitiva e político-social, disserta correlações para transmitir conhecimento, reflexões e também diversão, pois o prazer é, sobretudo, um fôlego revolucionário.
Kelmer faz em seu livro justamente isso, a ruminação como ensaio num enredo de linguagem leve, lúdica, engraçada, com criatividade e domínio da escrita. O protagonista, com problemas no casamento, é levado numa transmutação para o seu passado, onde encontra o seu amor, tudo no esplendor primaveril dos 20 anos de idade. Mas o prenunciável e o imprevisível se apresentam, porque nem na imaginação, devaneio e sonho, a vida é toda bela e sem conflagrações.
E o que essa doce vida perdida tem a ver com o mito grego? Tudo e muito mais que se queira buscando tornar as coisas menos chatas. Só lendo para ver a ousadia salutar de Ricardo Kelmer. Estão lá os personagens centrais Téssio e Ariane, como heterônimos de Teseu e Aríadne; a geografia do passado como a cidade Creta, e ele, o rapaz, vindo do presente como de Athenas se deslocou o herói. E tudo é labirinto nessa excursão mítica do ontem com o contemporâneo: a autor na destreza e manobras dos contornos do enredo, os personagens se espelhando e se compartilhando em dois tempos e o leitor imantado com a reflexão e o entretenimento. 

Nenhum comentário: