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Parecia tudo certo para o grande dia. A dona de casa Sônia de Sousa Faustino, 56 anos, tinha comprado o vestido para ir ao Cine Brasília na tarde de 25 de novembro de 2007, um domingo. Era 40ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e ela iria assistir ao documentário Dia de visita. Inserido na Mostra Brasília e concorrente ao Prêmio da Câmara Legislativa do DF, o filme reconta em 25 minutos quinze anos de sua vida, dedicados a evangelizar os presos na penitenciária Papuda. Mas dona Sônia nem chegou a estrear o vestido. Na tarde do sábado anterior faleceu atropelada na calçada de sua residência, na cidade-satélite Ceilândia.
O mais grave no caso é que não foi um acidente. O homem ao volante, condenado por homicídios e roubos e em regime de condicional, atropelou dona Sônia quando tinha intenção de matar o filho dela, que estava ao lado, que lhe devia uns meses de aluguel da casa onde morava com a mãe.
Dirigido pelo cineasta e fotógrafo brasiliense André Luis da Cunha, o documentário narra a história de dona Sônia e sua dedicação aos presos. Ela começou a trabalhar como voluntária na penitenciária em 1992, justamente quando o filho foi condenado a 12 anos por latrocínio. Passou a visitá-lo e estendeu seu trabalho de afeto e acolhimento aos demais presos. Passou a ser uma mãe para todos.
Naquela tarde André Luís da Cunha subiu ao palco do Cine Brasília visivelmente emocionado. Diante a sala lotada, muito triste e com a voz embargada, anunciou o seu filme, falou o que aconteceu com dona Sônia e o processo das filmagens. O cineasta disse que o documentário poderia parecer um pouco longo para categoria de curta-metragem, mas não poderia ser menor por se tratar de uma pessoa grandiosa como dona Sônia.
Premiado no Festival, de todos os filmes que assisti de André esse foi o que mais me tocou, não somente pelo fato marcante quando a vida não imitou a arte, quando ela é mais surpreendente e dolorida do que um roteiro. Tocou-me pela forma como o diretor, cuidadoso e afetuoso, adentra o coração da personagem, traçando em cada plano, em enquadramento e desenho de luz, a imensidão de um ser humano em dedicação incondicional. A mulher e a mãe, em beleza comovente, se revelam nos contornos de dona Sônia sob o olhar de André Luís da Cunha, como cineasta, como um filho. Não há distância, não há proximidade, há uma convivência orgânica que o cinema proporciona quando a sensibilidade de quem dirige um filme é o motor da câmera.
Lembrei imediatamente de Dia de visita quando soube ontem à noite da morte precoce de André, aos 51 anos. E lembrei também de nossa conversa naquele domingo quando nos encontramos no estacionamento de uma quadra residencial ao lado do cine Brasília. “Você tem convite para entrar?”, perguntou-me quando nos dirigimos ao cinema. Falei que estava com credencial e demos um “até mais”.
De lá para cá já se passaram quase 20 anos e muitos festivais de cinema, muitas dificuldades e esperança para quem vive nesse custoso ofício de lapidar o tempo, que é o cinema, para citar o seu xará Andrei Tarkovsky. Como dona Sônia, André estará ausente nas próximas sessões no Cine Brasília. Abraço-te na memória, caro amigo.