terça-feira, 31 de janeiro de 2023

o olhar e a luz de André


Foto Start Filmes


Parecia tudo certo para o grande dia. A dona de casa Sônia de Sousa Faustino, 56 anos, tinha comprado o vestido para ir ao Cine Brasília na tarde de 25 de novembro de 2007, um domingo. Era 40ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e ela iria assistir ao documentário Dia de visita. Inserido na Mostra Brasília e concorrente ao Prêmio da Câmara Legislativa do DF, o filme reconta em 25 minutos quinze anos de sua vida, dedicados a evangelizar os presos na penitenciária Papuda. Mas dona Sônia nem chegou a estrear o vestido. Na tarde do sábado anterior faleceu atropelada na calçada de sua residência, na cidade-satélite Ceilândia.

O mais grave no caso é que não foi um acidente. O homem ao volante, condenado por homicídios e roubos e em regime de condicional, atropelou dona Sônia quando tinha intenção de matar o filho dela, que estava ao lado, que lhe devia uns meses de aluguel da casa onde morava com a mãe.
Dirigido pelo cineasta e fotógrafo brasiliense André Luis da Cunha, o documentário narra a história de dona Sônia e sua dedicação aos presos. Ela começou a trabalhar como voluntária na penitenciária em 1992, justamente quando o filho foi condenado a 12 anos por latrocínio. Passou a visitá-lo e estendeu seu trabalho de afeto e acolhimento aos demais presos. Passou a ser uma mãe para todos.
Naquela tarde André Luís da Cunha subiu ao palco do Cine Brasília visivelmente emocionado. Diante a sala lotada, muito triste e com a voz embargada, anunciou o seu filme, falou o que aconteceu com dona Sônia e o processo das filmagens. O cineasta disse que o documentário poderia parecer um pouco longo para categoria de curta-metragem, mas não poderia ser menor por se tratar de uma pessoa grandiosa como dona Sônia.
Premiado no Festival, de todos os filmes que assisti de André esse foi o que mais me tocou, não somente pelo fato marcante quando a vida não imitou a arte, quando ela é mais surpreendente e dolorida do que um roteiro. Tocou-me pela forma como o diretor, cuidadoso e afetuoso, adentra o coração da personagem, traçando em cada plano, em enquadramento e desenho de luz, a imensidão de um ser humano em dedicação incondicional. A mulher e a mãe, em beleza comovente, se revelam nos contornos de dona Sônia sob o olhar de André Luís da Cunha, como cineasta, como um filho. Não há distância, não há proximidade, há uma convivência orgânica que o cinema proporciona quando a sensibilidade de quem dirige um filme é o motor da câmera.
Lembrei imediatamente de Dia de visita quando soube ontem à noite da morte precoce de André, aos 51 anos. E lembrei também de nossa conversa naquele domingo quando nos encontramos no estacionamento de uma quadra residencial ao lado do cine Brasília. “Você tem convite para entrar?”, perguntou-me quando nos dirigimos ao cinema. Falei que estava com credencial e demos um “até mais”.
De lá para cá já se passaram quase 20 anos e muitos festivais de cinema, muitas dificuldades e esperança para quem vive nesse custoso ofício de lapidar o tempo, que é o cinema, para citar o seu xará Andrei Tarkovsky. Como dona Sônia, André estará ausente nas próximas sessões no Cine Brasília. Abraço-te na memória, caro amigo.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

o termo saudade


Hoje é celebrado o Dia da Saudade, essa bela palavra substantivA feminina, tão expressiva na língua da última flor do Lácio, essa raiz em nosso coração do latim “solitatem” que desfolha no significado solidão, esse sentimento de nostalgia, essa ‘sodade’ a caminho de São Tomé na voz de Cesária Évora, essa delimitação do vazio que Olavo Bilac dizia que “é a presença dos ausentes”.

E assim,
"saudade" em Camões
é
“te extraño” em Cervantes,
“mi mancate” em Alighieri‎,
“I miss you” em Shakespeare,
“tu me manques” em Baudelaire,
“sehnsucht” em Goethe,
“tocka” em Dostoiévski,
“koishii” em Mishima,
“wo shiang ni” em Yu Xiang,
“brakujący” em Szymborska...
Em cearês saudade é Belchior: cinco anos e nove meses hoje que na parede da memória é o quadro que dói mais... 

domingo, 29 de janeiro de 2023

latitude


 

Pego o submarino Terral
no lago Paranoá,
m
e
r
g
u
l
h
o
minhas dores
nas
águas
fundas
do
mar
e navego até avistar
e ir ao encontro
das dunas brancas do pessoal do Ceará.


- Trecho do poema do meu livro em preparação A distância e a paisagem - escritos sobre Brasília.
Ilustração: desenho de Alphonse de Neuville para a edição de 1875 de Vinte mil léguas submarinas, de Julio Verne, Editora Houghton Mifflin, EUA.

sábado, 28 de janeiro de 2023

o menino que nós amamos


foto: Acervo Família Rodger Rogério

Há 79 anos o cantor, compositor, ator e físico Rodger Rogério continua um menino no chão sagrado do seu coração.

Parabéns pelo seu dia todos os dias, caro amigo!

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

o coração de Olga Benário

“Eu gostaria que soubessem que cumpri duas tarefas: uma do Partido e outra do meu coração”.
Trecho final do discurso da alemã, de origem judaica, Olga Gutmann Benário, no encontro da Juventude Comunista Internacional, em Moscou, 1928, sobre sua ação ao comandar o resgate da prisão de seu namorado, Otto Braum, militante do PC. O auditório aplaudiu em pé aquela jovem corajosa de 20 anos.
Olga tem também sua vida marcante no Brasil pela atuação ao lado de Luís Carlos Prestes, líder do movimento que entraria para a história como Intentona Comunista, com quem casou ao vir para cá, em 1934, com a missão de dar segurança pessoal ao Cavaleiro da Esperança na guerrilha. Mais uma vez cumprindo as tarefas do Partido e do coração.
Após a insurreição, duramente reprimida pelo governo de Getúlio Vargas, Olga e Prestes passaram a viver na clandestinidade, e acabaram detidos em 1936. Na prisão, Olga descobriu que estava grávida. No mesmo ano foi deportada para a Alemanha nazista.
Recebida pela Gestapo, foi levada para a prisão feminina do Campo de Concentração de Barnimstrasse, onde teve sua filha Anita Leocádia Prestes (hoje historiadora aposentada, 86 anos), que ficou com a mãe na cela até o fim do período de amamentação, e depois entregue à avó, dona Leo Benário.
Olga foi executada em 23 de abril de 1942, aos 34 anos de idade, na câmara de gás com mais 199 prisioneiras, no campo de extermínio de Bernburg. "Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo. Até o último momento, manter-me-ei firme e com a vontade de viver. Beijo-os pela última vez", escreveu em sua carta de despedida, citada na biografia Olga, de Fernando Morais, (Editora Ômega,1985). Sarah Helm, escritora e jornalista inglesa, em seu volumoso livro Ravensbrück — A História do Campo de Concentração Nazistas Para Mulheres (Editora Record, 2015, com tradução de Cristina Cavalcanti), na página 859 questiona dizendo que “nos arquivos não há resquícios dessa carta e sua autenticidade é duvidosa”.
Em 2008, por ocasião do centenário de seu nascimento, a Alemanha a homenageou, inaugurando uma ‘pedra de tropeço’ em frente ao último endereço em que ela viveu em Berlim, no bairro de Neukölln.
‘Pedras de tropeço’ são pequenas placas de latão fixadas nas calçadas dos locais onde moraram vítimas das atrocidades nazistas. Nelas estão escritos o nome, data de nascimento e de deportação e uma referência ao que aconteceu. Em toda Europa são encontradas mais de 13 mil placas semelhantes.
Hoje, 27 de janeiro, é celebrado o Dia Mundial da Lembrança do Holocausto, instituído pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em homenagem aos seis milhões de judeus e às outras vítimas da crueldade nazista. A data é uma alusão ao dia em que as tropas soviéticas libertaram o campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, na Polônia.
No contexto mundial alarmante da extrema-direita, do antissemitismo, da proliferação assustadora de grupos nazifascistas, das tentativas de governos conservadores de reescrever a história e distorcer os fatos, da intolerância e ódio espalhados pela Internet, das teorias absurdas de negacionistas, criacionistas, delirantes neopentecostais, a data de hoje é para lembrar que todos os dias são para lembrar.
...................................................................................................
Na foto, Olga Benário aos 20 anos.
Acervo Anita Leocádia Prestes / RJ, Arqshoah / Leer-USP

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

impulsos incontidos

foto Acervo Grupo Bloch

"Se os maus poetas soubessem que quando morrem, morrem para sempre, é possível que fossem mais cautelosos em suas exteriorizações e mais contidos em seus impulsos. Nada mais aterrador do que um mau poeta inspirado."

- Joel Silveira, escritor e jornalista (1918-2007), em Guerilha noturna, lançado pela Editora Record em 1994. O livro é uma preciosidade de aforismos, citações, reflexões sobre política, crítica social e literária, sempre com os petardos que marcaram sua escrita em mais de 20 títulos e centenas de reportagens. Manuel Bandeira dizia que "o texto do Joel é maciamente perfurante, como uma punhalada que só dói quando esfria”.
Imagino a perplexidade de Joel diante os impulsos incontidos de "maus poetas inspirados" nestes tempos de redes sociais. É aterrador.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

fontes das águas

"É o fundo do poço, é o fim do caminho / no rosto um desgosto, é um pouco sozinho..."
- Tom Jobim, em Águas de março, gravada inicialmente em 1972, no compacto simples Disco de Bolso, um projeto d’O Pasquim (de um lado, O Tom de Jobim, no outro, O Tal de João Bosco, com Agnus Dei), e no disco Matita Perê, que o autor lançou um ano depois pela Philips/Phonogram.
Em 1974 a canção ficou mais conhecida com a gravação no LP Elis & Tom, Philips.
No livro Tons sobre Tom, de Marcia Cezimbra, Tessy Callado e Tarik de Souza, resultado de 12 horas de entrevista com o maestro, publicado em 1995 pela Editora Revan, revela como foi composta essa obra-prima, inspirada depois de um dia cansativo de Tom preparando o repertório de Matita Perê.
Isolado no sítio do Poço Fundo, em São José do Vale do Rio Preto, região serrana do Rio de Janeiro, o compositor comentou com Thereza, sua então esposa, ao voltar de uma caminhada pelo mato: “é pau, é pedra, é o fim do caminho"... e a letra começou a ser rascunhada num papel pardo de embrulho que estava à mão do autor.
Falecido em 1994 aos 67 anos, hoje celebra-se o aniversário de 96 anos de nascimento.
O maestro à beira do Rio Preto, 1987. Foto de Ana Lontra Jobim, do livro "Ensaio Poético: Tom e Ana Jobim", Editora Jobim Music, 1987.



 

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

ser divergente


Fumar na rua, usar blusas transparentes, ter cabelos eriçados, dizer palavrões, ter vários namorados... esse comportamento nos anos 20 não era para qualquer um, ou mais exatamente, não era para qualquer uma: assim era Patrícia Galvão, a Pagu, escritora, poeta, diretora de teatro, tradutora, desenhista, cartunista, jornalista e militante política brasileira.

Ficou conhecida como musa do movimento modernista, embora não tenha participado no início, pois tinha apenas 12 anos de idade. A ligação se fez mais tarde, por ter definido seu trabalho com as características e conceitos da Semana de Arte Moderna, integrando-se ao movimento antropofágico em 1929, e abalado o conservadorismo da época ao ser o pivô da separação do escritor Oswald de Andrade da artista plástica Tarsila do Amaral.
Pela sua ferrenha atuação nos sindicados e filiada ao Partido Comunista, Pagu foi a segunda presa política do Brasil (a primeira foi Bárbara de Alencar), detida pela polícia de Getúlio Vargas ao promover uma greve dos estivadores no Porto de Santos.
Seguiram-se mais de vinte prisões, e por cinco anos torturada numa cela. Resistente e altiva, Pagu dizia “Esse crime, o crime sagrado de ser divergente, nós o cometeremos sempre”.
Faleceu de câncer aos 52, dois anos antes do Golpe de 64. Com certeza teria lutado contra a ditadura, continuado a cometer o crime de ser divergente. 

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

com sangue nas veias


“Na Porto Alegre dos anos 30, um rapaz era noivo da mulata Inah e, apesar de apaixonado por ela, hesitava em trocar a boemia pelo casamento. Inah esperou três anos. Quando se convenceu que o rapaz não tomaria uma atitude, foi à luta. Dias depois, ele a viu na rua da Praia, pendurada no braço de um homem – com quem se casaria. O rapaz desesperou-se, teve ganas de matar ou morrer. Mas acalmou-se e fez do sofrimento um samba-canção.”
- Ruy Castro em A noite do meu bem, publicado em 2015 pela Companhia das Letras.
O rapaz de menos de vinte anos era Lupicínio Rodrigues, e Nervos de aço o samba-canção que narrava a sua primeira grande desilusão, o seu desejo de morte ou de dor.
Gravado somente em 1947, na voz de Francisco Alves, se tornou um clássico no repertório não somente do autor, como na história do cancioneiro brasileiro.
O compositor construiu sua obra com mais de 150 canções, sempre relatando paixões, abandonos, casos e desapontamentos seus na maioria, e também dos amigos da boemia, como um cronista musical dos desencantos amorosos.
Lupicínio criou o termo “dor-de-cotovelo”, como o tipo de música que define os amantes bebendo suas dores com os braços apoiados em um balcão de bar.
Há outras ótimas interpretações da emblemática Nervos de aço, como a de Jamelão, gravada no disco Jamelão interpreta Lupicínio Rodrigues, em 1972.
A canção ficou mais conhecida para as novas gerações com a versão de Paulinho da Viola, com a faixa-título do vinilzão lançado em 1973, pela Odeon.
Acima, o mestre Lupicínio pelo traço de outro mestre: o cartunista e jornalista paraense J.Bosco
 

sábado, 21 de janeiro de 2023

se todos fossem iguais a vocês


Drummond, Vinicius, Bandeira, Quintana e Paulo Mendes Campos, fotografados por Moacir Gomes, na casa de Rubem Braga, Rio de Janeiro, 1966. Eles foram lá para conversar com um hóspede igualmente ilustre, Pablo Neruda.
Olho imantado essa foto como se olha uma imagem sacra.
foto Acervo Instituto Moreira Salles/Vinicius de Moraes

 

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

eu me lembro


foto Giuseppe Rotunno

Fantástico, onírico, nostálgico e memorialístico, Federico Fellini concebeu em Amarcord, 1973, um dos mais fortes libelos cinematográficos contra o fascismo. Autobiográfico, o cineasta ambienta seu delírio e expurgação nos anos 30 da Itália devastada pela figura pústula de Mussolini, pela moral repressora e destrutiva.
Na história, o personagem Titta é o alter ego do diretor. Mas todos os personagens que o rodeiam e habitam o passado nessa depuração de revogação nostálgica, são Fellinis. Mesmo não tendo tragédias sérias na família, o cineasta tomou posição e dizia que o fascismo aprisionou os italianos em uma adolescência perpétua de pesadelos, pelos tempos opressivos que viveram. O cinema o acolheu para espantar os fantasmas.
‘Amarcord’ é uma referência à tradução fonética das palavras "mi recordo" usada em Rimini, província da região de Emilia-Romagna, onde Fellini nasceu há um século e três anos hoje.

 

domingo, 15 de janeiro de 2023

"Mestre é Deus. Eu sou amigo"

fotos Ricardo Moura / Nirton Venancio

Assim se definia o cordelista, xilogravurista e agricultor paraibano José Soares da Silva, conhecido como Mestre Dila. Falecido no final de 2019, aos 82 anos, em Caruaru, o artista é considerado Patrimônio Cultural de Pernambuco, estado para onde mudou-se ainda criança.
Em seus trabalhos, Dila contou lendas, mitos e as aventuras de personalidades nordestinas, como padre Cícero, sempre misturando o que foi com o que poderia ter sido, o cotidiano com o imaginário, o sertão com o realismo fantástico. O sonho de um romeiro com o padre Cícero Romão, segundo os pesquisadores o seu cordel mais vendido, conta a história de um devoto que a caminho de Juazeiro do Norte, adormece sob uma árvore e sonha com padim Ciço anunciando coisas boas antes de terminar a romaria.
Nas feiras, Mestre Dila tinha o hábito de cantar o que escrevia, atraindo multidões pelo seu jeito simples e carismático. Espirituoso, dizia que havia enfrentado cangaceiros, era dono de uma fábrica de aviões a jato, fora “governador” da Itália, era parente longe de Mussolini e tinha dado conselhos e uns cascudos naquele desavergonhado para ele tomar prumo na vida. Mesmo com a cara séria imprimindo essas histórias, todos se divertiam com os absurdos.
Preferia fazer as xilos para seus livrinhos de cordéis, dizia que só ele sabia traduzir o sentimento de seus versos ao talhar a madeira. Criou uma marca em seu trabalho, estendendo suas gravuras para rótulos de cachaça, livros e remédios. Tinha como característica humanizar os bichos. Em um de seus quadros mais famosos, Preguiça, o artista manteve os membros com os dedos de garras longas do lento mamífero, mas o rosto é de um homem. Era uma forma de manter os seres vivos todos com a mesma importância e beleza.
Na exposição Movimento Armorial – 50 Anos, que começou em outubro do ano passado e terminou hoje, no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília, Mestre Dila é um dos artistas integrantes da história do movimento criado pelo grande Ariano Suassuna, que propunha a união das raízes nordestinas com a cultura erudita. O multicolorido de festas populares, do maracatu, dos reisados, se harmoniza com o preto e branco das xilogravuras. São mais de 140 obras divididas em três ambientes, um longo painel lúdico e fascinante de artistas como Francisco Brennand, J. Borges, Gilvan Samico, Aluísio Braga, Zélia Suassuna, Lourdes Magalhães, todos ali guiados pela vivacidade de Ariano, aquele que em 2014 com seu linho branco partiu ao encontro da Onça Caetana, como ele chamava a morte.
Fotografei o quadro do bicho-preguiça, que estava ao lado dos emoldurados tamanduás, cascavéis, tatus, bois, cabras - essa linda bicharada que Mestre Dila deixou pastando sob o céu do Nordeste que nos protege.
A benção, mestre e amigo.

sábado, 14 de janeiro de 2023

a indesejada das gentes


(Da moldura da porta o menino olhava
o tio com os mãos postas sobre o peito
as rezas os choros
as velas:
o cheiro do fim
e no pensamento acanhado pedia
aos parentes no futuro
que quando também fosse para céu de ibiapaba
deixassem as mãos estiradas ao longo do corpo
assim poderia voar como pássaro que voltaria).
Trecho do meu livro Trem da memória (Editora Radiadora, 2022)
Coordenação editorial: Alan Mendonça
Prefácio: Valdi Ferreira Lima
Posfácio: Mailson Furtado
Disponível à venda pelo site www.radiadora.com.br e com o autor.
...................................................................................................
Em memória do amigo Francisco Diógenes, que ontem partiu para o seu céu de Ibiapaba.
Foto ilustrativa para esta postagem: Acervo Família Lima Venancio 

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

só queria embalar meu filho


“Quem é essa mulher / que canta sempre esse estribilho / só queria embalar meu filho / que mora na escuridão do mar”

Essa mulher é Zuzu Angel. Esses versos são da música Angélica, que Chico Buarque compôs para ela, logo após sua morte em 1976, e está no disco Almanaque, de 1981. O filho que deixou de ser embalado pela mãe era Stuart Angel, estudante de Economia, militante do MR-8, preso em maio dos anos de chumbo de 1971, por agentes do Centro de Informação da Aeronáutica, torturado e assassinado, e o corpo possivelmente jogado na escuridão do mar. Tinha 25 anos, hoje faria 77.
Há relatos horríveis de testemunhas que estiveram com o rapaz na prisão, como o poeta Alex Polari, que disse ter visto ser arrastado por um jipe, com a boca no cano de descarga. A mãe, estilista reconhecida no Brasil e no exterior, dedicou sua vida a denunciar a morte do filho, enfrentando com coragem os generais da ditadura, apontando-os nominalmente, criando peças com estampas que representavam o período de repressão em que se vivia. Sempre ousada em suas criações, fez roupas com pedras e rendas do Nordeste, desvinculando-se da maneira colonizada de se vestir.
Zuzu Angel morreu misteriosamente em “acidente” de automóvel na saída do túnel Dois Irmãos, na Estrada da Gávea, Rio de Janeiro, local que hoje tem seu nome. Uma semana antes, entregou a Chico Buarque um documento que deveria ser publicado caso algo lhe acontecesse, onde escreveu: "Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho".

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

ônibusiata bolsonarista

foto: TV Globo
 
Segunda-feira, 9 de janeiro: 40 ônibus levando para a Polícia Federal os terroristas que depredaram os prédios dos Três Poderes da República.


sábado, 7 de janeiro de 2023

"De que precisaria a poesia brasileira?"


 - A poesia brasileira precisa de dinheiro. Precisa de uma estrutura econômica estável como alicerce. Precisa de que o Brasil seja rico e autoconfiante e independente em todos os sentidos. Precisa de universidades, enciclopédias, dicionários, editores, cultura humanística, museus, bibliotecas, público inteligente, críticos de verdade, agitação, coragem. Precisa de contar com uns poetas que leiam grego, com outros perseguidos pela polícia e com uns terceiros que leiam provençal e ameacem a sociedade. Isso sem contar com uns dois ou três cuja poesia fale à alma do povo.

Resposta do poeta piauiense Mário Faustino à pergunta de um hipotético leitor de seus poemas.
O trecho está na página 265 de Mário Faustino – Uma biografia, da poeta e professora de Literatura da Universidade Federal do Pará, Lilia Silvestre Chaves.
Resultado de sua tese de doutorado, o livro foi publicado em 2004, pela Secretaria de Cultura do Pará, em tiragem limitada. Raridade em sebos literários, o exemplar vai de 200 a 400 reais na Estante Virtual.
Até o momento é o único estudo biográfico de um dos mais autênticos poetas brasileiros, de relevância singular na terceira geração do Modernismo, autor de um único livro, "O homem e sua hora", 1955. Também jornalista, tradutor e crítico literário, Faustino morreu precocemente, aos 32 anos, em acidente aéreo nos Andes peruanos quando viajava a trabalho para Cuba e México, em 1962.
A tarefa de Lilia Silvestre, que pela natureza de pesquisa acadêmica desenvolveria mais para um estudo crítico, segue naturalmente por outro lado, meandros e labirintos da vida do poeta: fotos, cartas, as relações familiares, principalmente com uma das irmãs, que teria vendido todos os seus pertences e desaparecido, a homossexualidade assumida e discreta, e seu grande amor Oswaldo, com quem conviveu no período em que trabalhou na ONU, como correspondente do Jornal do Brasil, sua dedicação à traduções de grandes nomes da literatura mundial, como Dylan Thomas e Ezra Pound.
No enleio da narrativa é também natural e evidente o poeta Mário no profissional Faustino em tudo que fazia. Em cada gesto e iniciativa, colocava o seu lema “repetir para aprender, criar para renovar”, característica de uma revolução estética com sua página Poesia-Experiência no Suplemento Dominical do JB, em meados dos anos 50.
Três anos antes de falecer, decepcionado com os rumos de seu trabalho de pesquisa e reflexão sobre a poesia, Faustino dedicou-se mais ao jornalismo. É desse período a resposta ao leitor hipotético.
Uma lembrança oportuna para hoje quando se comemora o Dia do Leitor, hipotético ou não.

da poesia que me visita

´

Nirton Venancio abre seu "Trem da memória" com um plano-sequência desembestado, ofertando uma viagem em que os prolegômenos são absolutamente dispensáveis (comecem pela página 23 sem demora), tempo&espaço comunados em sentidos alertas, sonoros e velozes, uma construção de paisagens a escapar dos olhos, a evadir nostalgias e transformar a leitura, a fruíção do filme-vida, numa saudade feliz, cheia de ressignificados.

"Foi lá que o minúsculo das cartilhas / juntou-se ao maiúsculo das pessoas", afirma o insubmisso autor.
- Lima Trindade, escritor brasiliense residente em Salvador, autor de contos, novelas e romances. Seu livro As margens do paraíso (Cepe Editora, 2019) é uma das mais importantes obras da literatura brasileira contemporânea.
..................................................................................................................
Trem da memória (Editora Radiadora, 2019)
Coordenação editorial: Alan Mendonça
Prefácio: Valdi Ferreira Lima
Posfácio: Mailson Furtado
Disponível à venda pelo site www.radiadora.com.br e com o autor.

 

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

alguns magos do Oriente



Eles chegam tocando sanfona e violão,
os pandeiros de fita carregam sempre na mão...
Hoje é o dia de Santo Reis,
anda meio esquecido,
mas é o dia da festa de Santo Reis...
- Trecho de A festa de Santo Reis, de Márcio Leonardo, gravada por Tim Maia, em seu segundo LP, 1971.

 

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

o olho do cinema


Há 131 anos nasceu o cineasta russo Dziga Vertov, autor de Um homem com sua câmera (Chelovek s kino-apparatom), de 1929, seu nono e mais significativo trabalho de uma filmografia de 15 títulos.

Apenas o homem com uma câmera. Mas era O homem.
Um marco na história do cinema, um filme seminal não somente como documentário, mas como cartilha da linguagem cinematográfica.
O olho humano vendo o mundo através da lente da câmera.
No enquadramento tudo converge em um único ponto de visão.
A partir dessa obra-prima, criou-se o termo Olho-câmera.
Ou “cinema-olho”.
Ou “câmera-olho”.
Vertov.