terça-feira, 22 de março de 2022

o colecionador


fotos Acervo da família

“Há uma diferença muito grande entre um pesquisador, historiador e o colecionador. Mas no Brasil a deficiência é tão grande de objetos a serem pesquisados nos museus, que qualquer um que se meta a historiar ou a pesquisar — e qualquer brasileiro tem direito a isso, independente de sexo e idade, porque a pesquisa e o amor a verdade histórica é algo que nasce com a pessoa — tem que ser, antes de mais nada, um colecionador. Por isso é que acho que as coleções são indispensáveis.”
- Christiano Câmara, pesquisador, historiador, colecionador cearense, e tudo que o significa a memória da cultura musical brasileira. Guardava também centenas, em cópias VHS, de filmes dos estúdios hollywoodianos até os anos 50, começo dos 60, período que ele, com muito humor e convicção, considerava o melhor. O trecho acima é da entrevista que concedeu ao site A Nova Democracia, em setembro de 2003.
20 mil discos de cera, vinis, fotos, cartazes, revistas e enciclopédias, estavam guardados e sempre à disposição de quem quisesse visitar a casa-museu-acervo de Christiano, ali, no centro da cidade de Fortaleza, por detrás da Catedral, numa transversal da subida da rua Rufino de Alencar, no meio da travessa Baturité, onde o olhar descia para o fio dágua do rio Pajeú de um lado e a praia de Iracema do outro, ou Rua da Escadinha, 162, título do documentário curta-metragem realizado em 2003 pelo sobrinho Márcio Câmara, onde relata a trajetória do tio historiador autodidata, bancário aposentado, e uma das maiores referências de cultura no Brasil.
Sempre que se batia palmas – como antigamente – ao portão de ferro, ‘seu’ Christiano aparecia lá da entrada da casa, pelo corredor lateral. Com um sorriso e largas bermudas de quem sabe ficar em casa e viver criativamente a aposentadoria, recebia o visitante, adentrava e nos guiava pelo paraíso da memória, mesmo se a pessoa conhecesse, tivesse vindo outras vezes. Era sempre o primeiro dia de tantos outros para tanta coisa a se admirar.
Christiano nos conduzia pelas estantes, mostrava as raridades, abria os vinis e colocava uma faixa para ouvir. Enquanto ouvíamos a música, ouvíamos também a legenda de suas informações, datas, casos, histórias que, inevitavelmente, envolvia os ouvidos e o coração, tamanha a empolgação dele. Como se não bastasse aquele longo e afetivo passeio pela história da música brasileira dos anos 1910 à década de 50, o visitante era acolhido à mesinha na varanda para um café com tapioca, sempre servido por sua esposa, dona Douvina, 58 anos juntos.
E ali, na conversa continuada batendo um sol de final de tarde, seu humor ligeiramente ácido contrastava com a doçura daquele lanche caseiro: de repente bradava que “essa coisa de Bossa Nova! Aquilo é muito insosso, sem sal, sem gosto, sem sabor!”, sem se preocupar se a visita gostava ou não de um cantinho e um violão. E ilustrava sua tese citando versos de clássicos joãogilbertianos: “O barquinho vai, a tardinha cai... vê-se o Corcovado, que lindo”, misturando Menescal, Bôscoli e Jobim. “Isso lá é música! Falta um molho, uma pimenta!”, dizia, esfregando as pontas dos dedos, provocando uma sinestesia do paladar. E antes que o ouvinte discordasse ou se sentisse incomodado, voltava a cabeça para cozinha: “Douvina, meu amor, mais café aqui pra ele!”, e soltava uma gargalhada.
Em 2016, na madrugada do dia 22 de março, o memorialista faleceu, aos 81 anos, em decorrência de problemas cardiorrespiratórios, depois de dois meses hospitalizado.
Quase nonagenária e com Mal de Alzheimer, dona Douvina Câmara continua na casa, sob a proteção das filhas e de uma cuidadora. E sob o esquecimento que a doença provoca, olhando o nada através do tudo ao seu redor, em cada cômodo, em cada prateleira, em cada parede que concretiza toda uma vida ao lado do marido. “Ela está quietinha, em silêncio. Uma criança”, como me disse o fotógrafo Jose Rosa Filho, que por um tempo, enquanto foi possível, digitalizou parte das fotos, dos vinis, das fitas.
E quando por último dona Douvina subir a rua da Escadinha para encontrar Christiano, o acervo em que de certa forma nele existimos, não se sabe ainda a que será que se destina.

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Com adaptações para esta postagem, texto do meu livro ©Crônicas do olhar, no catálogo dos próximos lançamentos da Editora Radiadora.

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