sábado, 19 de março de 2022

em vez de tomar chá com torrada

foto Revista da Semana, 1939

 "Vou parar de escrever, pois estou chorando de saudade de todos, e de tudo."

Bilhete encontrado no bolso de Assis Valente, após sua morte, na terceira tentativa de suicídio, em 6 de março de 1958, no Rio de Janeiro. O compositor baiano estava atolado em dívidas, não recebia os direitos autorais de seus sambas, muitos deles gravados por Orlando Silva, Altamiro Carrilho, Elvira Pagã, Carmem Miranda, por quem nutria grande paixão, e se sentiu por ela menosprezado ao recusar o samba-exaltação Brasil pandeiro. "Assis, isso não presta. Você ficou borocoxô”, teria dito a cantora dos balangandãs.
Segundo o escritor e jornalista Gonçalo Júnior, autor da biografia Quem samba tem alegria, lançada em 2014 pela Editora Civilização Brasileira, foi a partida de Carmen Miranda para os Estados Unidos e a conseguente perda de sua melhor intérprete, que fez o compositor, já agravado por depressão, se estabelecer no vício da cocaína. Com farta documentação e depoimentos de familiares e amigos, o livro de 657 páginas traz essa e outras surpreendentes revelações, como o fato de o presidente da Câmara Municipal do Rio de Janeiro proibir o velório do artista no local por ser um suicida.
Brasil bandeiro, gravada tardiamente pelo conjunto vocal e instrumental Anjos do Inferno, foi incluída na trilha do filme Céu azul, comédia musical dirigida por Ruy Costa, em 1941, com Grande Otelo, Oscarito e famosos cantores do rádio, como Francisco Alves e Linda Batista. A música fez sucesso e ficou conhecida pelas novas gerações com a gravação dos Novos Baianos, em 1972, no ótimo disco Acabou chorare: "Brasil, esquentai vossos pandeiros / iluminai os terreiros / que nós queremos sambar”.
As anteriores tentativas de suicídio de Assis Valente seriam cômicas se não fossem trágicas. Na primeira vez, após uma tensa sessão de cobrança da cantora Elvira Pagã, cortou os pulsos com um pedaço de lâmina de barbear e desmaia. Da outra vez, pulou do alto do Corcovado e frondosas árvores ao pé do morro amorteceram a queda.
Resoluto, após a uma visita inglória ao escritório de direitos autorais para cobrar o que lhe cabia, “vestiu uma camisa listrada e saiu por aí”, como diz sua canção, senta-se em um banco de praça na Praia do Russel, e ingere guaraná com formicida em vez de Paraty. Tinha apenas 47 anos, muitas dívidas, centenas de composições, uma separação, uma filha adolescente, e muita solidão.
É de autoria de Assis Valente uma das mais tradicionais e tristes canções natalinas, “Boas festas”, a dos sintomáticos versos “Eu pensei que todo mundo / fosse filho de Papai Noel”. Gravada incialmente em 1933 por Carlos Galhado, a letra é muito apropriada à atribulada vida do compositor. Ele pensou que felicidade fosse uma brincadeira de papel.
Hoje, 111 anos de seu nascimento.
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Com adaptações para esta postagem, texto do meu livro ©Crônicas do olhar, no catálogo dos próximos lançamentos da Editora Radiadora.

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