terça-feira, 29 de março de 2022

uma rosa para Elifas


Meu caro Elifas Andreato, ao lhe abraçar em plena tarde de domingo na Casa das Rosas, em janeiro de 2019, na avenida Paulista, deu-me vontade de lhe ofertar aquelas flores que você desenhou nas mãos de Pixinguinha, e pediria a algum músico ali presente para tocar ao piano "Uma Rosa para Pixinguinha", a valsa que Radamés Gnattali compôs em 1964.
Tudo para embalar o apreço que lhe tenho como pessoa, como artista plástico, o maior designer gráfico e autor de mais 300 belas capas de discos da música brasileira. Tudo pra lhe dizer naquele 'hábraço' vespertino como sou tão carinhoso e muito e muito que lhe quero bem, amigo.
Sua partida nessa madrugada de terça-feira me partiu o dia em saudade.

sábado, 26 de março de 2022

mais além


 “Esta manhã, antes do alvorecer, subi numa colina para admirar o céu povoado, e disse à minha alma: 'Quando abarcarmos esses mundos e o conhecimento e o prazer que encerram, estaremos finalmente fartos e satisfeitos?'

E minha alma disse: 'Não, uma vez alcançados esses mundos prosseguiremos no caminho.’”
- Walt Whitman, em As folhas da relva, publicado em 1855. A ‘magnum opus’ do maior poeta norte-americano teve várias edições. Inicialmente, o autor bancou sozinho a tiragem, investiu do seu salário de empregado de um jornal. Whitman não considerava seu livro concluído.
A vida não parava de lhe dar motivos para desfolhar a relva e escrever. Escrever e se fazer presente em trabalhos voluntários nas ruas, nos hospitais, nos asilos, nas embarcações como marinheiro. Foram praticamente quatro décadas preparando o livro e convivendo com mendigos, prostitutas, operários, pessoas que compartilhavam as dores e a esperança. O poeta esteve na trincheira da Guerra da Secessão, na batalha entre o norte industrializado e abolicionista e o sul aristocrata, latifundiário e escravagista.
Whitman escreveu sobre a liberdade. E não por acaso é o criador do verso livre. Sua alma libertária se cristalizava na escrita desacorrentada da métrica acadêmica. E pela ousadia, lucidez em ver, sentir e falar sobre a odisseia do homem simples, Whitman chegou a ter sua obra acusada de esquisita, bizarra e até obscena, a ponto de um crítico descerebrado sugerir açoite em praça pública como punição.
Ao final da nona e última edição do livro, em 1892, já no leito de morte, Whitman chegou a 382 poemas.
As folhas da relva é uma espécie de bíblia da poesia norte-americana. Um livro de fôlego, épico, sobre o ser humano em busca de respostas e caminhos. Uma vez concluído e alcançado o objetivo do poeta, prosseguimos no caminho dele.
Abaixo, o autor fotografado por George Collins Cox, em 1887. Um dos retratistas pioneiros, Cox sempre esteve por perto de Whitman, e notabilizou-se pelas belas imagens que expressavam a consistência da alma do poeta. Seu acervo foi restaurado em 1979, e digitalizado na Library of Congress's Prints and Photographs, Washington.
Hoje, depois de 130 anos de sua morte, a poesia da imagem também indo mais além.

terça-feira, 22 de março de 2022

o colecionador


fotos Acervo da família

“Há uma diferença muito grande entre um pesquisador, historiador e o colecionador. Mas no Brasil a deficiência é tão grande de objetos a serem pesquisados nos museus, que qualquer um que se meta a historiar ou a pesquisar — e qualquer brasileiro tem direito a isso, independente de sexo e idade, porque a pesquisa e o amor a verdade histórica é algo que nasce com a pessoa — tem que ser, antes de mais nada, um colecionador. Por isso é que acho que as coleções são indispensáveis.”
- Christiano Câmara, pesquisador, historiador, colecionador cearense, e tudo que o significa a memória da cultura musical brasileira. Guardava também centenas, em cópias VHS, de filmes dos estúdios hollywoodianos até os anos 50, começo dos 60, período que ele, com muito humor e convicção, considerava o melhor. O trecho acima é da entrevista que concedeu ao site A Nova Democracia, em setembro de 2003.
20 mil discos de cera, vinis, fotos, cartazes, revistas e enciclopédias, estavam guardados e sempre à disposição de quem quisesse visitar a casa-museu-acervo de Christiano, ali, no centro da cidade de Fortaleza, por detrás da Catedral, numa transversal da subida da rua Rufino de Alencar, no meio da travessa Baturité, onde o olhar descia para o fio dágua do rio Pajeú de um lado e a praia de Iracema do outro, ou Rua da Escadinha, 162, título do documentário curta-metragem realizado em 2003 pelo sobrinho Márcio Câmara, onde relata a trajetória do tio historiador autodidata, bancário aposentado, e uma das maiores referências de cultura no Brasil.
Sempre que se batia palmas – como antigamente – ao portão de ferro, ‘seu’ Christiano aparecia lá da entrada da casa, pelo corredor lateral. Com um sorriso e largas bermudas de quem sabe ficar em casa e viver criativamente a aposentadoria, recebia o visitante, adentrava e nos guiava pelo paraíso da memória, mesmo se a pessoa conhecesse, tivesse vindo outras vezes. Era sempre o primeiro dia de tantos outros para tanta coisa a se admirar.
Christiano nos conduzia pelas estantes, mostrava as raridades, abria os vinis e colocava uma faixa para ouvir. Enquanto ouvíamos a música, ouvíamos também a legenda de suas informações, datas, casos, histórias que, inevitavelmente, envolvia os ouvidos e o coração, tamanha a empolgação dele. Como se não bastasse aquele longo e afetivo passeio pela história da música brasileira dos anos 1910 à década de 50, o visitante era acolhido à mesinha na varanda para um café com tapioca, sempre servido por sua esposa, dona Douvina, 58 anos juntos.
E ali, na conversa continuada batendo um sol de final de tarde, seu humor ligeiramente ácido contrastava com a doçura daquele lanche caseiro: de repente bradava que “essa coisa de Bossa Nova! Aquilo é muito insosso, sem sal, sem gosto, sem sabor!”, sem se preocupar se a visita gostava ou não de um cantinho e um violão. E ilustrava sua tese citando versos de clássicos joãogilbertianos: “O barquinho vai, a tardinha cai... vê-se o Corcovado, que lindo”, misturando Menescal, Bôscoli e Jobim. “Isso lá é música! Falta um molho, uma pimenta!”, dizia, esfregando as pontas dos dedos, provocando uma sinestesia do paladar. E antes que o ouvinte discordasse ou se sentisse incomodado, voltava a cabeça para cozinha: “Douvina, meu amor, mais café aqui pra ele!”, e soltava uma gargalhada.
Em 2016, na madrugada do dia 22 de março, o memorialista faleceu, aos 81 anos, em decorrência de problemas cardiorrespiratórios, depois de dois meses hospitalizado.
Quase nonagenária e com Mal de Alzheimer, dona Douvina Câmara continua na casa, sob a proteção das filhas e de uma cuidadora. E sob o esquecimento que a doença provoca, olhando o nada através do tudo ao seu redor, em cada cômodo, em cada prateleira, em cada parede que concretiza toda uma vida ao lado do marido. “Ela está quietinha, em silêncio. Uma criança”, como me disse o fotógrafo Jose Rosa Filho, que por um tempo, enquanto foi possível, digitalizou parte das fotos, dos vinis, das fitas.
E quando por último dona Douvina subir a rua da Escadinha para encontrar Christiano, o acervo em que de certa forma nele existimos, não se sabe ainda a que será que se destina.

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Com adaptações para esta postagem, texto do meu livro ©Crônicas do olhar, no catálogo dos próximos lançamentos da Editora Radiadora.

segunda-feira, 21 de março de 2022

a história de Carbonari


foto Juca Varella, 2003

No final dos anos 80 fui a produtora do documentarista Primo Carbonari, em Barra Funda, zona oeste da capital paulista. Atencioso, ouviu minhas informações e meu pedido sobre uma pesquisa que estava fazendo para um trabalho.
Impressionou-me aquele senhor gordo, tipicamente italiano, como um personagem vindo de um filme de Fellini para outro de Ettore Scola. Bastante reservado, calça largas de linho cinza, suspensórios, usava pares de lentes grossas improvisadas em uma armação de óculos de soldador, o que já remetia a protagonista de filmes dos irmãos belgas Dardenne. A peculiaridade dos óculos dava-lhe precisão para manusear películas 16 e 35mm, ajustar as lentes das câmeras, acionar a moviola, e ler os jornais de letras miúdas quando as visitas saiam.
Ele me guiava pelos labirintos de corredores abarrotados de estantes de ferro com latas e latas e latas com mais de 13 mil rolos de filmes. O cheiro de celuloide poderia ser sufocante para quem não fosse um apaixonado pela magia do cinema. Quilômetros de imagens de cinejornais naquelas prateleiras, muitos que vi antes das projeções dos clássicos europeus, dos westerns de John Ford e os spaghetti de sua Itália imigrante. Estava eu ali, entre as obras guardadas em minha memória afetiva, guiado na galeria por seu total criador. Era como entrar no útero de uma parte do cinema.
Primo Carbonari foi responsável durante 45 anos pelo Cinejornal, informativo veiculado nas salas de cinema de todo o país com as mais variadas notícias. De 1929 a 1990, registrou imagens que marcaram o desenvolvimento da indústria, as pesquisas e progresso da medicina, os momentos históricos do esporte, os movimentos culturais, os desfiles das escolas de samba, e principalmente a política, que era seu tema predileto. Carbonari filmou as posses de Getúlio aos presidentes da ditadura militar, e o enterro de Tancredo Neves.
Em 2003 o cineasta Eugênio Puppo iniciou um projeto para recuperar e catalogar o riquíssimo acervo, e finalizar o trabalho em um documentário que contasse a recente história do Brasil através das lentes de Carbonari. Acervo que ele adequadamente chamava de AmplaVisão. O projeto não foi concluído, por questões com os herdeiros.
Primo Carbonari faleceu em 2006, no começo da noite de 21 de março, de problemas causados pela obesidade, aos 86 anos. Em 2012 o Jornal GGN noticiou que um processo em que envolve a produtora de Eugênio Puppo e a filha do documentarista, Regina Carbonari, corria na 1ª Vara Cível do Foro Regional de Santana. E nesse impasse, a história em lamentável decomposição química pela inadequada conservação dos rolos de filmes.
Mesmo sem pretensão, Carbonari tornou-se um dos maiores documentaristas brasileiros. Um dos primeiros com uma ideia na cabeça perseguindo a notícia e uma câmera 16mm na mão apreendendo o fato.
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Texto do meu livro ©Crônicas do Olhar, no calálogo dos próximos lançamentos da Editora Radiadora.

sábado, 19 de março de 2022

em vez de tomar chá com torrada

foto Revista da Semana, 1939

 "Vou parar de escrever, pois estou chorando de saudade de todos, e de tudo."

Bilhete encontrado no bolso de Assis Valente, após sua morte, na terceira tentativa de suicídio, em 6 de março de 1958, no Rio de Janeiro. O compositor baiano estava atolado em dívidas, não recebia os direitos autorais de seus sambas, muitos deles gravados por Orlando Silva, Altamiro Carrilho, Elvira Pagã, Carmem Miranda, por quem nutria grande paixão, e se sentiu por ela menosprezado ao recusar o samba-exaltação Brasil pandeiro. "Assis, isso não presta. Você ficou borocoxô”, teria dito a cantora dos balangandãs.
Segundo o escritor e jornalista Gonçalo Júnior, autor da biografia Quem samba tem alegria, lançada em 2014 pela Editora Civilização Brasileira, foi a partida de Carmen Miranda para os Estados Unidos e a conseguente perda de sua melhor intérprete, que fez o compositor, já agravado por depressão, se estabelecer no vício da cocaína. Com farta documentação e depoimentos de familiares e amigos, o livro de 657 páginas traz essa e outras surpreendentes revelações, como o fato de o presidente da Câmara Municipal do Rio de Janeiro proibir o velório do artista no local por ser um suicida.
Brasil bandeiro, gravada tardiamente pelo conjunto vocal e instrumental Anjos do Inferno, foi incluída na trilha do filme Céu azul, comédia musical dirigida por Ruy Costa, em 1941, com Grande Otelo, Oscarito e famosos cantores do rádio, como Francisco Alves e Linda Batista. A música fez sucesso e ficou conhecida pelas novas gerações com a gravação dos Novos Baianos, em 1972, no ótimo disco Acabou chorare: "Brasil, esquentai vossos pandeiros / iluminai os terreiros / que nós queremos sambar”.
As anteriores tentativas de suicídio de Assis Valente seriam cômicas se não fossem trágicas. Na primeira vez, após uma tensa sessão de cobrança da cantora Elvira Pagã, cortou os pulsos com um pedaço de lâmina de barbear e desmaia. Da outra vez, pulou do alto do Corcovado e frondosas árvores ao pé do morro amorteceram a queda.
Resoluto, após a uma visita inglória ao escritório de direitos autorais para cobrar o que lhe cabia, “vestiu uma camisa listrada e saiu por aí”, como diz sua canção, senta-se em um banco de praça na Praia do Russel, e ingere guaraná com formicida em vez de Paraty. Tinha apenas 47 anos, muitas dívidas, centenas de composições, uma separação, uma filha adolescente, e muita solidão.
É de autoria de Assis Valente uma das mais tradicionais e tristes canções natalinas, “Boas festas”, a dos sintomáticos versos “Eu pensei que todo mundo / fosse filho de Papai Noel”. Gravada incialmente em 1933 por Carlos Galhado, a letra é muito apropriada à atribulada vida do compositor. Ele pensou que felicidade fosse uma brincadeira de papel.
Hoje, 111 anos de seu nascimento.
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Com adaptações para esta postagem, texto do meu livro ©Crônicas do olhar, no catálogo dos próximos lançamentos da Editora Radiadora.

segunda-feira, 14 de março de 2022

vândalos famosos


foto Acervo Tempo Glauber

Quando Glauber Rocha completou 18 anos de idade, juntou sua turma e foram comemorar no cabaré Tabaris, um dos mais frequentados de Salvador na época, onde bebiam, dançavam e se divertiam com belas garotas. Os jovens foram impedidos porque não estavam devidamente de terno e gravata. Tentaram conversar, negociar, apelaram para a data comemorativa, mas não convenceram. O regulamento era severo, não adiantava nem “traje de passeio completo”.

Revoltados, a juventude transviada soteropolitana despedaçou um cavalete com um cartaz que anunciava “as mais belas mulheres da Bahia”. Foram detidos e levados à Delegacia de Polícia, acusados de vandalismo, perturbação da ordem e desacato à autoridade.
Na sede da Polícia, o escrivão, enquanto preenchia o relatório, apontou para Glauber e perguntou seu nome, que sério, respondeu:
- Julian Duvivier – e soletrou – Ju-li-ã Du-vi-vi-ê.
O escrivão datilografou e passou para o próximo, que já entendera a brincadeira iniciada pelo futuro cineasta.
- Charles Bodelér, Bodelér, bê-ó-dê-ê-lê-é-rê – respondeu quem, de fato, se chamava Anísio.
- E o seu? – perguntou ao terceiro.
- Carlos Drummond de Andrade.
O quarto:
- Mário de Andrade.
O escrivão olhou para os dois por cima dos óculos e perguntou:
- São parentes?
O último dos vândalos não poupou ao responder qual era o seu nome:
- Salvador Dalí.
Nesse momento o delegado entra e vê que os jovens infratores estavam debochando da cara do escrivão, que não tinha nenhum conhecimento daqueles nomes que datilografara e já ia lavrar o relatório.
Tudo terminou em gargalhadas, foram liberados, e Duvivier, Baudelaire, Drummond, Mário de Andrade e Salvador saíram dali rindo pela rua Dois de Julho, comemorando o aniversário de Glauber.
Hoje, 83 anos de nascimento do santo guerreiro do cinema brasileiro.

domingo, 13 de março de 2022

final de domingo com Clarice


"Quando tiraram os pontos de minha mão operada, por entre os dedos, gritei. Dei gritos de dor, e de cólera, pois a dor parece uma ofensa à nossa integridade física. Mas não fui tola. Aproveitei a dor e dei gritos pelo passado e pelo presente. Até pelo futuro gritei, meu Deus."

A revolta, de Clarice Lispector, do livro Aprendendo a viver, página 131, publicação póstuma, Ed. Rocco, 1999, onde reúne textos publicados de 1969 a 1972 no Caderno B do Jornal do Brasil.
Clarice fotografada por Bluma Wainer em Paris,1946.

terça-feira, 8 de março de 2022

8 de março

 

foto Arquivo Nacional

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.
A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede.
- A noite não adormece nos olhos das mulheres, 2008, de Conceição Evaristo, publicado no livro Poemas da recordação e outros movimentos, 2017.
Conceição Evaristo escreveu em memória de Maria Beatriz Nascimento, historiadora, professora, poeta e ativista pelos direitos humanos de negros e mulheres, assassinada em 1995, aos 52 anos, pelo marido de uma amiga, a quem aconselhou a largá-lo após várias reclamações de violência doméstica. Preso e condenado a 17 anos de prisão, argumentou que a ativista interferira em sua vida privada.
A noite nunca adormecerá nos olhos de Beatrizes, Marielles, e tantas brasileiras... Conceição Evaristo em vigília atenta vigia a nossa memória.

segunda-feira, 7 de março de 2022

o iluminado Stanley Kubrick


"Se algo pode ser escrito, ou pensado, pode ser filmado."
Em seus filmes todas as cenas de perspectiva convergem a um corte simétrico. A técnica meticulosa e original no mais anímico recorte do real.
O cinema pensado, escrito e filmado.
23 anos hoje sem o seu ponto de vista.

sábado, 5 de março de 2022

Pasolini no Brasil


Em março de 1970, Pier Paolo Pasolini viajava para o Festival de Cinema Mar Del Plata, Argentina, para apresentar Medeia, baseado na obra teatral de Eurípides, do distante século V a.C. Ao seu lado a cantora lírica Maria Callas, estrela do filme.

Passando por céus brasileiros, o avião teve que fazer um pouso de emergência em Recife. Os passageiros desceram e ficaram no hall. Logo se espalhou a notícia do famoso cineasta em solo pernambucano. O diretor de Teorema às margens do Capibaribe!
Nas poucas horas em que ficou no aeroporto, o atento observador Pasolini impressionou-se com os operários que trabalhavam na construção do prédio e aqueles que, transeuntes de outra classe social, eufóricos o cumprimentavam.
A imagem, como um retrato social do país que ele não conhecia de perto, o inspirou a escrever um poema. “No aeroporto em construção, passando / diante de um grupo de operários que trabalham / dos olhos que se levantam aos passageiros / é assim que o Brasil me saúda”, diz um trecho.
Quando retornou do Festival, Pasolini decidiu conhecer um pouco mais do Brasil. Parou em Salvador e Rio de Janeiro. Suas reflexões políticas e sociais o atiçavam. Vivíamos o pesadelo do terceiro período da ditadura militar sob o comando de Médici. O cineasta, com seus filmes e seu discurso engajado, intensificava críticas e denúncia do modelo cruel consumista de sua Itália, desde duas décadas, logo após a Segunda Guerra, disseminado pela revolução industrial. O neocapitalismo da também revolução tecnológica amedrontava Pasolini, que via principalmente na nova geração, jovens vítimas de uma cruenta doutrinação econômica.
O instinto do pensador em sua inquietação, relacionava situações preocupantes em países do terceiro mundo. Viver por uns dias o Brasil, testemunhar seus contrastes sociais, foi para o cineasta tão emergente quanto o pouso em Recife. Por isso, voltou.
No Rio foi guiado por um rapaz de nome Joaquim, que personificou a imagem da pobreza, da felicidade, do medo, da falta de perspectiva... (“aquele que arranca os olhos / pode ser confundido com aquele cujos olhos são arrancados. / Joaquim nunca poderia ser diferente de um sicário. Por que então não amá-lo se o tivesse sido?”, descreve em trecho do outro poema).
E subiram a favela da Rocinha (“A favela fatalmente nos esperava, / eu grande conhecedor, ele guia – / seus pais nos acolheram, e o irmãozinho pelado / recém-saído de trás do oleado –, ah, sim, invariabilidade da vida”, descreve do alto do poema).
O cineasta de encontro a uma realidade longe e perto da praia de Copacabana: “Se chego a uma cidade de além-mar / Muitas vezes chego a uma cidade nova, levado pela dúvida”, relata como num cartão postal às avessas em um ponto do poema. Uma realidade congênere a que ele via nas periferias de Roma (“ignorantes de imperialismo clássico / de qualquer delicadeza quanto ao velho Império a explorar / os Americanos dividem entre si os irmãos supersticiosos”, acusa no poema).
As disparidades sociais que o cineasta observou, mostrou uma espécie de estandardização da miséria e do consumo, entre um modelo do capitalismo europeu e o que se aplicava em países da América latina e na África.
Passados alguns dias nesse tour político-social, Pasolini voltou à Itália com dois poemas que expressam sua visão de um Brasil bem abaixo dos céus que o fizeram descer em Pernambuco.
Transumanar e organizar e Hierarquia, e mais reflexões de lúcido pensamento, estão no livro que leva o nome do primeiro poema, publicado em 1971.
Nos versos finais do poema escrito no Rio de Janeiro, Pasolini diz revoltado: “Ó Brasil, minha pátria desgraçada, / destinada sem escolha à felicidade / (de tudo são donos o dinheiro e a carne, / ao passo que você é tão poético)”.
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Hoje, 100 anos de nascimento de Pasolini.
O texto acima faz parte do meu livro ©Crônicas do Olhar, no catálogo dos próximos lançamentos da Editora Radiadora.
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O cineasta Luiz Carlos Lacerda, diretor de importantes títulos do cinema brasileiro - Mãos vazias, Leila Diniz, For All - o trampolim da vitória, Viva Zapato -, está realizando Celebrazione, filme-homenagem a Pasolini, retratando exatamente a passagem do cineasta pelo Brasil, tendo como base narrativa o poema Hierarquia.
Assim como fez com o filme sobre sua grande amiga Leila Diniz, Luiz Carlos Lacerda, admirador e pesquisador da obra e vida do artista italiano, é o diretor certo para abordar o episódio em terras brasileiras. É uma celebração entre dois grandes cineastas.
O filme tem produção da Cavideo, do cineasta Cavi Borges.
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Acima, Pasolini e Maria Callas desembargando no aeroporto Santos Dumont, Rio de Janeiro, 1970. Foto ©ANSA

sexta-feira, 4 de março de 2022

e os olhos cansados de ler o Pessoa


Acima, verso de O das quinas, de Fernando Pessoa, escrito em 1928, publicado em Mensagem, 1934.

* Belchior em Fotografia 3x4, disco Alucinação, 1976.