quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

imprima-se a beleza

 

Acima, reprodução de Impressão, nascer do sol, o mais célebre quadro de Claude Monet, de 1872.

O óleo sobre tela mostra o amanhecer no porto Havre, região da Alta Normandia, França.
Exposta no Museu Marmottan, em Paris, a pintura magnetiza, imanta, ou mais apropriadamente, impressiona, pela beleza da névoa cerrada sobre o estaleiro, o movimento dos barcos e a fumaça que sobe das chaminés ao fundo.
Conta-se que o crítico Louis Leroy ao ver a obra teria se espantado, dito e se arrependido da pressa:
“Ao contemplar, pensei que meus óculos estivessem sujos: o que aquela tela representava? O quadro não tinha direito nem avesso... Impressão, nascer do sol! Claro que impressiona: qualquer papel pintado em estado embrionário está mais concluído do que essa marinha.”
Do comentário deu-se o nome do quadro, criou-se o termo “impressionismo”, que passou a ser o nome do movimento, que se tornou sinônimo de Monet. Tempos depois, o próprio Leroy se vangloriava de ter contribuído de forma enviesada para a história.
Praticamente toda a obra de Monet se caracteriza por pinturas que retratam paisagens. Era sua paixão o mundo lá fora do jeito que o impressionava por dentro. E de tanto trabalhar horas e horas exposto ao sol dos verões, e em busca de claridade ao ar livre noutras estações do ano, o pintor contraiu catarata aos 67 anos. Mas não parou de pintar, passou a usar cores fortes para senti-las, como o vermelho-carne. E continuou por mais de dez anos em frente ao cavalete, as cores das paisagens dilatando enquanto a escuridão chegava. Aos 83 anos estava quase totalmente cego, sem ver por fora o que continuava mais aceso e vermelho em seu coração.
A pintura tinha um trato com Monet: manteve-se viva, direcionando as mãos com os pinceis, esculpindo em cores o tempo que chegava ao fim. Um pouco mais abaixo dos olhos, um câncer de pulmão o levou aos 86 anos. O olhar cerrado noutra dimensão continuava impressionando.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

ainda sou uma garotinha


Em 1999, o baterista João Barone, do Paralamas do Sucesso, idealizou e organizou o projeto Submarino Verde e Amarelo, para arrecadar fundos para a Associação dos Amigos do Instituto Nacional do Câncer – AMINCA.

O show, realizado em 14 de julho, no Teatro da Lagoa, Rio de Janeiro, reuniu várias cantoras e cantores brasileiros interpretando canções emblemáticas dos Beatles, Zélia Duncan, Flávio Venturini Zizi Possi, Beto Guedes, Zé Ramalho, Fernanda Takai, Frejat, Samuel Rosa... a participação de Cássia Eller foi um dos destaques. A eterna garotinha cantou Golden slumbers, Carry that weight e The end, as três penúltimas faixas (a última é Her Majesty) do lado B do álbum “Abbey Road”, que em setembro daquele ano comemorou 30 anos do lançamento.
Acompanhando Cássia, o auxílio luxuoso de Barone, Vinícius Sá no baixo, Marçalzinho na percussão, Luizinho Avellar no piano, Cyro Telles nos teclados, Fernando Vidal na guitarra, Filipe Freire no violão e guitarra e Cecília Spyer, Suzana Bello e Matias Corrêa nos vocais. O evento foi lançado em CD e DVD em 2000.
20 anos hoje que Cássia não morreu.

domingo, 26 de dezembro de 2021

salve a batina do bispo Tutu


foto Hassan Ammar / AP

Na 19ª edição da Copa do Mundo, em 2010, sediada na África do Sul, na festa de abertura em Johanesburgo, destacaram-se entre tantos convidados, o som contagiante do grupo hip hop/dance Black Eyed Peas e sua bela vocalista Fergie, a irresistível música do cantor e guitarrista maliano Vieux Farka Toure, celebrando uma ótima fusão do blues africano com o reggae e o dub, a beleza da voz e charme da cantora colombiana Skakira.

Mas o bom mesmo, que surpreendeu e superou todas as apresentações, foi o discurso do arcebispo da Igreja Anglicana Desmond Tutu, Nobel da Paz em 1984, vestido com a camisa da seleção da casa e um cachecol dos Bafana Bafana, prestando uma emocionante homenagem a Nelson Mandela, saudando "bem-vindos ao solo sagrado da África do Sul!"
Desmond foi o primeiro negro a ocupar o cargo de arcebispo da Cidade do Cabo, e também o Primaz de sua igreja por dez anos, a partir de 1986. Junto com Mandela foi uma das figuras centrais do movimento contra o Apartheid, liderando protestos em locais públicos contra o governo sul-africano. Soube muito bem vestir-se com indumentárias de altas posições no clero africano para lutar contra a segregação racial em seu país e no mundo.
Dizia que a fé e compreensão bíblica sem trabalho e coragem é uma crença morta. Nas últimas décadas Desmond Tutu assumiu abertamente pautas atuais e falava sobre a ocupação do território palestino por Israel, os direitos da população LGBTQIA+, as mudanças climáticas e tantos outros temas urgentes.
Diagnosticado com câncer de próstata no início dos anos 90, Desmond Tutu faleceu nesta de manhã de domingo natalino, aos 90 anos.
“Ó, Cristo Rei, branco de Oxalufã, zelai por nossa negra flor pagã, salve a batina do bispo Tutu”, como louvava Gilberto Gil em Oração pela libertação da África do Sul, gravada no disco Dia Dorim Noite Neon, 1985.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

i'll sing you a song


Os sete minutos de Joe Cocker no filme Woodstock, de Michael Wadleigh, cantando With a little help from my friends, é um dos momentos mais marcantes do documentário sobre os três emblemáticos dias de paz, música e amor.

O vozeirão do cantor britânico, com essa mesma canção dos seus conterrâneos Beatles, do álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, 1967, marcou igualmente pela abertura da série estadunidense Anos Incríveis (The Wonder Years), que a TV Cultura exibia nos anos 90.

Joe Cocker, com sua voz gutural, sua performance energética, e seu tipo de anti-herói viking, era doce na mesma proporção quando falava de canções, de sua vida, de sua infância na Inglaterra, e como conseguiu superar os problemas com álcool e drogas nos anos 70.

Em agosto passado, 52 anos de Woodstock.
Hoje, sete anos sem Joe Cocker. 

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

o anjo pornográfico

foto Arquivo Veja, 1973.

"Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico (desde menino)."

- Nelson Rodrigues em Flor de Obsessão, antologia definitiva das melhores frases do dramaturgo, organizada por Ruy Castro, 1997.
Implacável cronista da mediocridade pequeno-burguesa, Nelson tinha um humor ferino em suas frases geniais. Contraditório, mas íntegro em seus pensamentos, ele veio para chacoalhar a obviedade ululante.
41 anos hoje sem o olho dele no buraco da fechadura.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

avante, Chile!

 

Gabriel Boric, 35 anos, 58,64 dos votos.

A esquerda vence a extrema-direita pinochetista!

sábado, 18 de dezembro de 2021

je ne regrette rien


 foto Jean Philippe Carbonier, 1957

Edith Piaf interpretava e vivia cada palavra que cantava. Derramava seu coração em cada nota.

Non, je ne regrette rien, letra belíssima de Michel Vaucaire, musicada por Charles Dumont, gravada em 1960, é, sem dúvida, a canção que melhor exprime seu jeito de amar, viver e de ir embora.

Hoje, 105 anos de seu nascimento, sem arrependimentos, mesmo ao contrário do que dizia em outra canção marcante, “je vois la vie en rose...”, mesmo e apesar dos poucos e intensos 47 anos idos.


sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

cinema em transe


 foto Danilo Verpa

Em Bang bang, de Andrea Tonacci, 1970, um cineasta durante a realização de um filme enfrenta diversas e bizarras situações. A realidade dentro de uma ficção e a ficção em conflito com a realidade.

Essa é a síntese do cinema de Tonacci, desde seu primeiro curta-metragem, Olho por olho, de 1966, seguido do média Blá-blá-blá, até o belíssimo Já visto jamais visto, 2014, seu último e sintomático trabalho no qual o cineasta revisita suas memórias com registros inéditos de imagens de família, viagens, projetos inacabados...
Italiano radicado no Brasil, Tonacci é o mais importante nome do que se denominou Cinema Marginal Brasileiro, movimento que se desenvolveu nos anos 70, que seguia uma linha em contraponto ao Cinema Novo pulsante da década de 60, mas que apontava em comum aspectos, fragmentos e passagens relevantes, como um cinema feito com baixo orçamento, a estrutura autoral e personagens exasperados à beira do extremo. Um cinema que se juntava às vertentes pensantes e entrava em transe na terra do sol contra a mesmice.
Aos 72 anos, Andrea Tonacci faleceu em 16 de dezembro de 2016 depois de uma luta contra um câncer.
2016, o ano que vivemos em perigo, e parece não acabar mais de tanta noticia ruim de lá pra cá. Um ano visto jamais visto

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

resistência da memória - os seres aqui de baixo


"Estou convencido que a memória tem a força da gravidade. Ela sempre nos atrai. Os que têm memória são capazes de viver no frágil tempo presente. Os que não a tem, não vivem em nenhuma parte.”
- Patricio Guzman, cineasta chileno, em seu filme Nostalgia da luz (Nostalgia de la luz), de 2010, documentário sobre os assassinados pelo regime de Pinochet.
No alto do deserto de San Pedro de Atacama, ao lado do imenso observatório onde astrônomos pesquisam pontinhos nas galáxias em busca de vida extraterrestre, mulheres catam pedacinhos de ossos de seus parentes enterrados pela ditadura.
Uma simetria precisa, simbólica e reflexiva de duas realidades.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

pronome pessoal


 Eu não sou uma pessoa física.

Muito menos jurídica.

Eu sou uma pessoa lírica.

- Eudoro Augusto, poeta português-brasiliense.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

oh my love

foto Annie Leibovitz

- Por que você não pode ficar sozinho, sem a Yoko?
- Eu posso, mas não quero.
John Lennon em uma entrevista para a revista Rolling Stones, 1970. 

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

o quinto ato


Em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general de plantão, Costa e Silva, foi decretado o Ato Institucional nº 5, colocando em recesso o Congresso Nacional, intervindo ostensivamente nos estados e municípios, cassando mandatos de parlamentares, suspendendo por dez anos os direitos políticos de qualquer cidadão, retirando garantia do habeas-corpus... Configurou-se a expressão mais acabada e absoluta da ditadura militar instituída com o golpe de 1964. O AI-5 foi o golpe dentro do golpe.

"Revogadas as disposições em contrário", vivemos a intensificação dos tempos de arbitrariedades, de prisões, de torturas, de mortes, de “suicídios”, de corpos em valas comuns, sumidos, jogados ao mar.
Há mais de cinquenta anos que pais não têm seus filhos de volta, que filhos não conhecem seus pais, que brasileiros perderam o passado em cárceres e ainda ecoam em seus ouvidos a ira de seus carrascos. A tortura como instrumento do Estado, e da lei, foi uma marca registrada do governo militar.
Bestas terraplanistas do atual desgoverno apocalíptico invocaram novamente o Decreto fascista. Vivemos a mais surreal página infeliz de nossa história.

domingo, 12 de dezembro de 2021

à altura dos corações

 

Yasujiro Ozu, o cineasta do cotidiano, dos laços e desenlaces familiares.
Criador dos planos com tripé baixo, sua câmera-tatame está sempre à altura dos corações dos que partem e dos que voltam.
Minimalista, com serenidade e sutileza, seu cinema disseca sentimentos, como deve ser para o entendimento e reflexão de todos nós, seres imperfeitos metidos a sabidos.
Em seus filmes Ozu estabelece uma estrutura neorrealista, confrontando o velho e o novo Japão, muito bem definido no envelhecimento e na modernidade, nos filhos e nos pais, nas cidades e nos costumes, no efêmero que somos, no eterno que pretendemos.
Como em conceito taoísta, o cineasta veio e se foi no mesmo dia, 12 de dezembro. Os 60 anos que se ligam entre o seu Yin em 1903 e o seu Yang em 1963, reúnem as forças da transformação contínua, da vida que surge à vida que se destina.

sábado, 11 de dezembro de 2021

intextualidades


Foi mergulho nas extremidades de sexta-pra-sábado, já era lá pela uma da madrugada. Adormeci por cima dele. Quando acordei, ele estava lá, mas não era o conto breve de Monterroso. Era Nirton Venancio e o seu Poesia provisória.

Um novo livro é desses deslumbramentos sem correspondentes pra mim. E quando a dedicatória fala de um “abraço permanente”, aí a rendição é completa.

O poeta Nirton é imenso em envergadura, abarca as tardes, reconstrói nuvens e seduz em cada verso. “O poeta percebe de forma estranha” e a poeta o percebe como nunca antes, porque ali é tempo de troca: o poema confessional, a confidência, o pacto de confiança.

Aqui, ele aparece brincante e drummondiano: “Vai, Nirton, ser artista da vida”, sendo que o artista nasceu completo e plural, versátil em várias linguagens de fazer-se artista. Pessoa e Tolstói ecoam em “dentro de mim cabem o universo e o vilarejo onde nasci”.

Uma discreta Noémia de Sousa passa por ali:
“Tirem-nos tudo, mas deixem-nos a música...”

Eu que já intertextualizei com ela, dou o ar da minha graça:
levem o que já não me serve
mas deixem-me a poesia
aquela que me ressuscita
do dia em que eu morri

E Nirton:
“Tirem-me até os braços, as pernas
tampem-me os olhos
mas não tirem as asas que criei pra mim”

Que força é essa que une poetas de outros tempos e espaços numa madrugada insone?

“Da janela do oitavo andar vejo as solidões.”
O meu “Vento do 8o. andar” me alerta: Ah, esse poeta tá de brincadeira comigo!

“Descobrindo Manoel” confirma a reverência que eu já tinha visto lá atrás: “para alguma coisa servem as minhas inutilidades.”

Não tem jeito para o meu jeito de ler. Eu leio numa busca obsessiva de referências, intertextualidades que anos de análise lacaniana me dizem que não são coincidências. “Não me procure nesse endereço, meu coração mudou-se. Pouco resta do antigo inquilino. A casa está vazia.”

Pausa para recomposição (...)

“Este poema pode me custar a vida.” Sim, poeta, vale a pena romper padrões, se for pra alcançar a infinitude de um poema. Obrigada pela impermanência da sua poesia nada provisória. É de paradoxos que se fazem poetas.

Íris Cavalcante

sou do sereno poeta muito soturno




Noel Rosa viveu apenas 26 anos e cinco meses, de boemia e poesia, dos 111 que hoje completam do seu nascimento.

Ele foi um dândi enviesado, um irreverente com suprema inteligência, no começo de um século reverencioso aos bons costumes do lugar. Rosa que atravessava a noite e curtia a vida.
Noel Rosa: Uma Biografia, de João Máximo e Carlos Didier, lançada em 1990 e logo recolhida pelas sobrinhas herdeiras do compositor, é o mais completo relato da vida do artista. O livro foi proibido através de ações judiciais, alegando desrespeito à vida privada da família, possivelmente por mencionar os suicídios da avó e do pai de Noel.
O texto é primoroso, com a elegância que o biografado merece.
O título desta postagem é um verso da canção Três apitos, que Noel começou a compor em 1931, burilou a letra ao longo do ano seguinte, e em 1933 a considerou finalizada. Ficou guardada por vinte anos. Em 1951, a cantora Aracy de Almeida gravou em seu disco Feitio de oração, com arranjos de Radamés Gnatalli.
Aracy cantou as mais emblemáticas composições do "anjo torto" de Vila Isabel, Com que roupa, Último desejo, O X do problema, Não tem tradução, Palpite infeliz, O orvalho vem caindo, com Kid Pepe, Conversa de botequim, Feitiço da Vila, Pra que mentir, Feitio de oração, estas em parceria com Vadico.
Em 1936, em uma de suas raras entrevistas, à revista A Pátria, o poeta muito soturno declarou que "Aracy de Almeida é a pessoa que interpreta com exatidão o que eu produzo".

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

a vida de Clarice

"Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."

- Clarice Lispector através da personagem Lóri em Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, 1969.
Hoje 101 anos do nascimento de quem mergulhou na vida até os 57.
Acima, Clarice fotografada por Bluma Wainer, em Paris,1946.

A imagem do acervo do filho da escritora, Paulo Gurgel Valente, foi usada na capa de Clarice, uma biografia, do norte-americano radicado na Holanda, Benjamin Moser, 2009. Uma pena que o título na edição brasileira, pela Cosac Naify, omita um dado importante do original, "Why this world: a biography of Clarice Lispector". O "por que este mundo" é ao mesmo tempo uma pergunta-afirmação bem tipica das inquietações e mistérios de Clarice.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

murmúrios dolentes


Filha de caso extraconjugal, registrada ilegítima de pai incógnito, casamentos desfeitos, traumas de um aborto involuntário, sérios sinais de neurose, a morte de um irmão querido em acidente aéreo, duas tentativas de suicídio... na terceira, "os dias são outonos, choram... choram... / há crisântemos que descoram... / há murmúrios dolentes de segredos..."

Florbela Espanca tinha apenas 36 anos quando a vida se desfez em "fumo leve que foge entre meus dedos!...", em 1930, no mesmo dia e mês em que nasceu, 8 de dezembro.
Seus dias inquietos, sua solidão, seus sofrimentos íntimos intransferíveis, se refletem em uma poesia tão flor, tão bela, "no mist'rioso livro do teu ser..."

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Glauber, o gênio visionário

 

“Vamos dar um golpe, virar a mesa, fazer história. Se houver eleições, Vieira ganha. Se não houver, ganho eu”,
diz o líder conservador Porfírio Diaz a Júlio Fuentes, dono dos principais veículos de comunicação da República de Eldorado – fictícia ilha tropical em meio a embates políticos - sobre a candidatura de um vereador populista.

A cena é de Terra em transe, de Glauber Rocha, 1967, um ano antes da decretação do AI-5, o golpe dentro golpe durante a ditadura militar.
O filme é uma alegórica distopia político-carnavalesca, uma explosiva parábola do Brasil naquele período dos anos 60.
Premiado nos festivais de Havana, Cannes e Locarno, Suíça, foi proibido pela censura fascista de Salazar em Portugal. No Brasil, interditado em todo o território, considerado subversivo e irreverente com a Igreja e só liberado com a condição de que fosse dado um nome ao padre interpretado por Jofre Soares.
O personagem Porfirio Diaz, magnificamente interpretado por Paulo Autran, é uma alusão ao ditador que governou o México de 1884 a 1901.
Além do elenco com Jardel Filho, Glauce Rocha, Paulo Gracindo, José Lewgoy, Paulo Cesar Pereio, Mario Lago, Darlene Glória, Zózimo Bulbul, a equipe desse clássico da cinematografia brasileira foi integrada por Dib Lufti e Luiz Carlos Barreto na direção de fotografia, trilha sonora de Sérgio Ricardo, montagem de Eduardo Escorel, produção de Barreto, Glauber, Cacá Diegues, Zelito Vianna e Raimundo Wanderley.
O cineasta Martin Scorsese, que ajudou na restauração de Terra em transe, declarou em uma entrevista à revista Cahiers du Cinéma, em 1996, que “o filme leva o espectador ao esgotamento, tão intenso e implacável é a sua confusão de sons e imagens. Até hoje nunca vi nada igual!”.

A visão da genialidade de Glauber coloca os personagens Porfirio Diaz e Júlio Fuentes na simetria do tempo do Brasil República Eldorado dos últimos anos.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

na vertigem do dia

 

"A poesia é um momento em que sou obrigado a pensar. Por mim eu não pensaria em nada. É como um poema em que escrevi. 'Ah, ser somente o presente: esta manhã, esta sala.'"
- Ferreira Gullar em entrevista à revista Piauí, janeiro de 2007.
O verso que ele cita é do poema Extravio, publicado no livro Muitas vozes, 1999.
O título da postagem é uma menção ao livro publicado em 1980.
A poesia na transversal do tempo, no emaranhado de pensamentos.

sábado, 4 de dezembro de 2021

o último poema

 

"Luciana, tudo isso é inútil. Me leva para Ipanema. Quero entrar no mar e ir embora."

- Um dos últimos apelos de Ferreira Gullar à filha.
Consciente da gravidade de seu estado de saúde, o poeta recusou a opção que lhe ofereceram de prolongar a vida artificialmente por meio de aparelhos.
Entrou no mar e foi embora em 4 de dezembro de 2016.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

memória

 

"Não há resistência sem a memória", disse no passado sobre o amanhã o visionário Jean-Luc Godard, que hoje completa 91 anos.

O cineasta fotografado por Philippe R. Doumic, 1960, e os 24 quadros por segundo de Acossado (À bout de souffle).

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

inteiramente


"Todo esse mês de viagem nada tenho feito, nem lido, nem nada - sou inteiramente Clarice Gurgel Valente".

- Clarice Lispector em carta a sua irmã Elisa, 19/8/1944, no livro Clarice Fotobiografia, de Nádia Battella, 2007.
Durante sua viagem a Europa na Segunda Guerra, em companhia do marido, a escritora não usava o sobrenome Lispector, sua ascendência judia ucraniana, por medo dos nazistas.