Galos, noites e quintais, de Belchior, foi gravada inicialmente por Jair Rodrigues, no disco Minha hora e vez, 1976, um sucesso radiofônico do cantor consagrado desde sua envolvente parceria com Elis Regina no programa O Fino da Bossa.
Em 1977, Belchior grava a canção no LP Coração selvagem, terceiro e um dos seus mais expressivos discos em letras e melodias. A versão do autor, com os arranjos da bateria pulsante de Pedrinho Batera, os riffs progressivos do guitarrista João Paulo, o moog dinâmico de José Roberto Bertrami, dão a música um ritmo pop, um rock emergente em seus três acordes.
Segundo pesquisa de Jotabê Medeiros para a biografia Belchior – Apenas um rapaz latino-americano, 2017, o cantor iniciou a composição no começo dos anos 60, no Mosteiro dos Capuchinhos, em Guaramiranga, região serrana no Ceará. Belchior ainda não tinha 25 anos de sonho, de sangue e de América do Sul. Mas por força daquele destino, chamava-se frei Francisco Antônio de Sobral.
Aplicado nos estudos de filosofia, teologia e latim, o noviço Belchior foi um atento observador da situação política do país. Um golpe civil-militar tomou o poder pouco antes. A letra de Galos, noites e quintais, reflete poeticamente a situação sombria que se instalava e que se estendeu por mais de 20 anos. Na foto abaixo, a Ordem Menor dos Capuchinhos recebe visita de Castelo Branco. O tempo umbroso personificado no presidente-marechal, seu conterrâneo.
Entre a saudade, ou um certo banzo sertanejo, do seu tempo e geografia (“eu era alegre como rio / um bicho, um bando de pardais”), quando podia decidir livremente sua vida (“quando eu ganhava esse mundo de meu Deus”), até mesmo quando a dor doía em paz (“quando adoçava o meu pranto e o meu sono / no bagaço de cana de engenho”), Belchior denuncia a gravidade de um governo ditatorial (“mas veio o tempo negro e a força fez comigo / o mal que a força sempre faz”), mas não se desloca do presente, e mesmo tendo o olhar lacrimoso, manifesta consciência crítica como cidadão e artista (“não sou feliz, mas não sou mudo / hoje eu canto muito mais”).
E naquele chão hodierno, sitiado em uma realidade, o compositor faz uma analogia inversa e irônica, ao lembrar que antes andava “por entre as fileiras do milho verde que ondeiam”, insinuando que então o tempo passara para o alinhamento do verde militar no comando do país. Até o canto dos galos nas noites dos quintais ("quando havia"), foi trocado pelo despertar das cornetas, e a “saudade do verde marinho” sugere que o mar virou sertão.
Em 1966, após três anos de vida monástica, Belchior abandona a pesada vestimenta franciscana e o corte de cabelo “tijelinha”. “Não tenho vocação para a vida religiosa”, disse ao seu superior, frei Pacífico. “Pois então pode ir”, concordou.
Galos, noites e quintais é uma canção atualíssima, em grito, despertar e resistência.
Hoje, dois anos e seis meses que Belchior não morreu e canta muito mais.
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