sábado, 31 de agosto de 2019

nova roupa colorida

No exato dia em que completaram dois anos e quatro meses que Belchior ficou encantado com uma nova invenção, 30 de agosto de 2019, no mesmo espaço em que ele se despediu dos fãs, Teatro Dragão do Mar, em Fortaleza, a cantora niteroiense Daíra apresenta o show, baseado no disco homônimo, de 2017, Amar e mudar as coisas – Daíra canta Belchior, com sala lotada, público entoando as canções, aplaudindo, emocionando-se.
Elis Regina é sem dúvida, a interprete marcante da música do cantor cearense, com a gravação de Como os nossos pais e Velha roupa colorida, em 1976, no disco Falso brilhante. Mas o que a jovem cantora Daíra faz é mais que uma releitura, é um significado impressionantemente visceral e surpreendente da obra de Belchior.

Com sua voz afinadíssima, ela mergulha no corpo das canções, e externa, dos gestos minimalistas ao remate teatral, a tradução anímica das letras. Acompanhada apenas de violão e guitarra do ótimo Augusto Feres, a cantora (en)canta com o mesmo domínio de um cântico à capela, com o mesmo desígnio sacro dos que bem conhecem os fundamentos da Schola Cantorum: é ela e a canção. É a voz e a música.
Nos gestos mais delicados das mãos enquanto ela canta, vê-se o desenho da construção das letras de Belchior. No olhar mais etéreo dela em direção à plateia, ouve-se a voz das letras discursivas de Belchior. No caminhar mais elegante de seu corpo pequeno, sente-se a grandiosidade coreográfica dos relatos de Belchior. Daíra faz uma espécie de musical em solo das composições de Belchior.
Nesse caleidoscópio midiático em que a música brasileira descaminha, é gratificante ver e ouvir uma cantora que canta. Uma cantora que vive a letra que canta. Uma cantora com posições firmes de resistência diante este tempo tosco em que o país vive. Sem afetação, Daíra picha uma faixa, estende e contagia a plateia: “Fora, Bolsonaro. Salvem a Amazônia”, na urgência sob o lema do título do show.
Daíra não era nascida quando Belchior apareceu no final dos anos 70 com o disco Alucinação. Daíra nascia quando Belchior dizia que seu coração era frágil como um beijo de novela. Daíra nasceu para a música brasileira quando Belchior desapareceu e seu lugar era onde a alma deseja. E como o tempo anda mexendo com a gente, Daíra segue cantando lembrando que há mais de dois anos que Belchior não morreu. E assim, a arte não distingue gerações: une talentos de todas as idades.
Cronista do espaço, do homem e do seu tempo, Belchior tem na interpretação de Daíra a efígie de seus recados, a voz do novo que sempre vem.

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