Cris, 12 anos, e seu irmão mais velho são
deixados na beira da estrada por seus pais. Em pouco tempo percebem que o
castigo vem a se tornar um desafio ainda maior. O irmão também a
abandona. Esse é o mote do filme pernambucano “Eles voltam”, de Marcelo Lordello, exibido na primeira noite da Mostra
Competitiva de Longa Ficção no 45º Festival de Brasília do Cinema
Brasileiro. Simples assim, diria-se sobre o argumento.
Todos
os temas, todas as histórias e todas as lendas universais: em torno
delas e no olho do redemoinho está o homem e suas inquietações, seus
conflitos, seu espanto, suas alegrias e tristezas, e sua esperança.
Contam-se os limites da aldeia para falar do universo, lembrando a
máxima de Tolstoi. E o que conta é como contar. Do banal é bem possível
se dissecar reflexões se se conta de uma ótica que comumente é vista de forma irrelevante. A ousadia é a percepção e coragem de dizer sim. É
risco.
O filme “Eles voltam” acompanha a garota em sua jornada
de retorno ao lar. Entre o abandono e o reencontro, não se sabe o
motivo, o que aconteceu. Depois se revela. Antes a garota precisa saber
de umas coisas. Menina mimada e branquinha, não sabe o caminho de
encontros nesse “road movie” pedestre, nem desconfia o que há na imensidão
da estrada que só conhecia da janela do carro. Lá fora as realidades
são distintas, e agora serão seus guias. Uma fábula que lembra o
percurso de Dorothy em “O mágico de Oz”. Mas sem arco-iris. A vida não é
filme, você não sabia, Cris, e as cores têm tons realistas que pintam
outras vivências. O choque de classes sociais pega a garota de leve, aos
poucos, mas pega, não poupa.
O grande barato do filme é
justamente como essa história é contada. O diretor usa sua câmera quase
que invisivelmente, como um observador que espera que seus personagens
sejam atingidos, sem perturbá-los, sem interferir em nada, sem
ajudá-los. Marcelo Lordello solta “cruelmente” aquela garota no deserto
que reflete uma realidade do país que se contradiz com tanto discurso
idiota de progresso. O país pulsa na poeira e nas falas de quem ali
habita. É num acampamento do MST que a menina chega de encontro ao país
em mora e que desconhecia sua geografia e sua gente. O cineasta coloca essa conjuntura de duas realidades sem
discursos inflamados, mas com uma sutileza implacável. A câmera fixa ou
na mão demora-se em longos planos não por descuido ou desconhecimento de
linguagem, mas justamente por discernimento do olhar. É dessa forma que
o espectador entra na história, contorna o enquadramento, e percebe o
movimento e alma dos personagens. Um longo plano tem inevitalmente essa
provocação. Ou entra-se no filme ou se retira da sala. Não tem
meio-termo. Alguém na saída do cinema, que não gostou do filme,
classificou como um Antonioni tardio. Bem lembrado o cineasta italiano.
Mas não tardio. Nenhuma arte é datada, e inconscientemente absorvemos
tudo que ela representa para fazer tudo que nos espelhe, direcione e
reinvente. Há pontuações que se possa usar como analogias, mas “Eles
voltam” está longe de um “Desprezo”, “A noite”, “O eclipse” e outros
clássicos de Antonioni. O filme tem sua identidade. Lembrou-me os
ótimos filmes da nova geração de cineastas asiáticos. Não tem o apuro de
decupagem dos filmes de Petrus Cariry, por exemplo, mas tem uma competente captação de imagem no desenho de
câmera, nos silêncios, na escassez de diálogos, na naturalidade dos
não-atores contracenando com quem sabe das marcações de cena, nos links
que se situam em algum canto do enquadramento. Em um bom filme, nenhum
detalhe está ali à toa. Dispensa-se gruas mirabolantes, corrida com
steadycam, efeitos digitais e atores famosos. O encontro de "Eles
voltam" é com o Cinema.