segunda-feira, 30 de junho de 2025

autorretrato


"este vidro de relógio
partido em mil esperanças"
- Fragmento cheio de amanhãs de Carlos Drummond de Andrade em Resíduo, publicado no livro A rosa do povo, 1945.

 

domingo, 29 de junho de 2025

alguma coisa


 Do meu livro Poesia provisória (Editora Radiadora, 2019).

Aos amigos Aíla Sampaio e Elias N Sampaio.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

a aparência do ser



"Pensa que não entendo? O inútil sonho de ser. Não parecer, mas ser. Estar alerta em todos os momentos. A luta: o que você é com os outros e o que você realmente é. Um sentimento de vertigem e a constante fome de finalmente ser exposta. Ser vista por dentro, cortada, até mesmo eliminada. Cada tom de voz uma mentira. Cada gesto, falso. Cada sorriso uma careta. Cometer suicídio? Nem pensar. Você não faz coisas desse gênero. Mas pode se recusar a se mover e ficar em silêncio”.

Essa é a principal fala do filme Persona, que Ingmar Bergman dirigiu em 1966. A enfermeira Alma dá uma espécie de diagnóstico a Elisabeth, atriz de teatro, que durante a apresentação da peça Electra, de Eurípedes, fica muda, e assim passa a viver, em silêncio diante de tudo, em atos comezinhos, em gestos minimalistas, sem nenhuma doença visível.
O sueco Bergman é o mais implacável dissecador da alma humana. Poucos cineastas conseguiram adentrar com a câmera os mais secretos sentimentos que encantam e perturbam o homem em suas relações afetivas.
Os seus personagens não escapam de sondagem psicológica, seus roteiros não se livram de acepção filosófica.
Em Persona, Liv Ullman e Bibi Andersson entregam-se às suas personagens de forma anímica, uma retratando na outra o que seria o ser e a aparência. E no cinema de Bergman as aparências não enganam.
O filme será exibido, em cópia restaurada, hoje às 20h30 e amanhã às 18h30, na tela do Cine Brasília, dentro da programação Sessão Clássicos.

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Agam


“Desceu. Com as mãos, com o corpo, com a coragem descalça. Desceu por entre pedras afiadas, vertigens e precipícios. Não para salvar a vida — que já havia partido —, mas para salvar a dignidade da morte. Para que uma filha pudesse voltar para os braços de sua mãe. Para que o último gesto não fosse abandono, mas acolhimento”.
- João Guató, jornalista, em sua página Pasquim Cuiabano.


 

quinta-feira, 19 de junho de 2025

127 anos em cartaz


Em um pequeno vilarejo no sertão pernambucano, três histórias de amor e desejo revolucionam a paisagem afetiva de seus moradores. Personagens de um mundo romanesco, no qual suas concepções da vida estão limitadas, de um lado pelos instintos humanos, do outro por um destino cego e fatalista.

Essa é a sinopse de um dos melhores filmes do cinema brasileiro, A história da eternidade, roteiro e direção de Camilo Cavalcante, 2014.
Na belíssima cena abaixo, o ator Irandhir Santos, na pele e na alma do personagem João Dinho, interpreta, coreografa, dubla Ney Matogrosso em “Fala” e sintetiza toda a essência do filme.
Hoje se comemora o Dia do Cinema Brasileiro. A data é uma referência às primeiras imagens em movimento feitas em nosso território: a entrada da baía de Guanabara pela câmera do italiano Afonso Segreto, em 1898, a bordo do navio francês Brésil.

leitura do dia


 

sábado, 14 de junho de 2025

100 anos de Dalton Trevisan


14 de junho de 2025: o escritor curitibano chegou perto de comemorar o centenário de nascimento. Faleceu em 9 de dezembro do ano passado.
O Instituto Moreira Salles produziu o documentário O arquivo de Dalton Trevisan para celebrar a data. Dirigido por Matheus Balbino, a representante editorial Fabiana Faversani nos conduz ao local onde ele trabalhava.
A casa. A biblioteca. As cartas. As fotos. Os recortes de jornais. O tempo organizado. A memória.
São 11 minutos pelo espaço sagrado de Trevisan.

domingo, 8 de junho de 2025

já é outra viagem

Caro Alberto Perdigão, comecei a ler seu livro Belchior: a construção de um mito na literatura de cordel (RDS Editora, 2025), lançado no último dia 5 na abertura da Feira do Livro de Brasília.
O viés de sua pesquisa é fascinante. O texto de introdução, como você constrói a descrição dos fatos e discorre a narrativa, é admiravelmente criativo ao intertextualizar o relato com versos de Belchior.
Sigo lentamente, saboreando cada parágrafo dos capítulos, palmilhando o chão sagrado sobre o que diz a literatura de cordel da vida, obra e morte de Belchior. No compasso daquela estrada ali em frente das páginas, no mesmo ritmo que o rapaz latino-americano degustava com vagar um cubano e na fumaça desenhava-se um verso.
Trabalho imprescindível, como diz Stelio Torquato Lima na apresentação.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

o filme da minha vida


Acima, a sequência final do filme Ladrões de bicicleta (Ladri di biciclette), de Vittorio De Sica, 1948: na Roma pós-guerra, cansado de procurar por sua bicicleta roubada, o desempregado Antonio Ricci decide furtar uma em frente a um estádio.
A câmera ali centralizada na aflição do pai, sob o olhar confuso, triste e complacente do filho Bruno.
Clássico do neorrealismo, é um dos filmes mais importantes da história do cinema e da minha vida. Direcionou o meu olhar e a forma de fazer cinema, deu início a minha devoção pela cinematografia italiana, que tão bem sabe contar histórias sobre núcleo familiar.
Em Ladri, o garoto, ao mesmo tempo que está perdido, contorna situações através de seu ponto de vista e de sua sensibilidade de criança observadora. O personagem é o fio condutor do filme, sua ligação com o pai é o que enlaça a construção narrativa. O mesmo fez Pietro Germi em O ferroviário (Il ferroviere), de 1956. O diretor, ao centralizar toda dramaticidade na relação do pai maquinista com o filho que vai sempre esperá-lo na estação, declaradamente, nessa intertextualidade afetiva, homenageou o pequeno ator Enzo Staiola por sua atuação no filme de De Sica.
E eu, ao estrear no mundo como pai, dei ao meu filho o nome Enzo, em referência e reverência.
De forma invertida, no olhar contre-plongée do filho, uma homenagem também ao ator Lamberto Maggiorani, que lembra muito meu pai, pelo rosto esculpido de operário, o paletó roto e as mãos dadas. Meu filho olha para mim, que olho para meu pai.
Entre trens e bicicletas, entre a Itália pós-guerra e o Brasil pós-golpe, o cinema na trilha dos corações.
O ator Enzo Staiola partiu quarta-feira, 4, aos 85 anos.

terça-feira, 3 de junho de 2025

o alma brasileira do menino da Parnaíba


“Apesar de toda precariedade, eu tive a sorte de nascer às margens do Rio Parnaíba. Eu nem sei como aprendi a nadar. A gente entrava no rio e de repente percebia que sabia se virar na água. A família organizava muitas festas.

A minha pintura tem essa alegria, esse desejo de felicidade do povo, da alma brasileira.
Esse é o lado bom do Brasil”.

domingo, 1 de junho de 2025

o tempo em Riatla


Muitos escritores erguem desenhos urbanos, como metáforas que traduzem a relação das pessoas com os lugares. Italo Calvino em sua obra máxima As cidades invisíveis, arquitetou a geografia afetiva de mais de cinquenta espaços que enunciam as condições e inquietações humanas, como memória, crenças, esperança, velhice, morte.

O poeta piauiense Diego Mendes Sousa edificou em sua obra a cidade imaginária Altaíba, em referência e reverência a sua musa, onde somente ele reside ao lado do “amor transcendido dos / mangueizais femininos da Altair”, como registra em um poema do livro Velas náufragas (2019).
Sousa sedimenta em sua alma litorânea um burgo muito mais distinto do que Pasárgada, onde Bandeira era amigo do rei e escolheria uma mulher; urbe mais eterna que Itabira que se tornou apenas uma fotografia na parede e como doía em Drummond; aldeia muito mais polida do que Macondo, onde García Márquez viveu sua solidão centenária. A cidade do poeta no quimérico dos deltas é conjugação no indicativo presente.
O piuaiense de Parnaíba inventa mais um enigma geográfico em seu novo livro A borda do mar de Riatla (Editora Brigada Mandum Ladino, 2025). Cidade erguida entre o rio e o peso mitológico do mundo, como alude o topônimo, movido e evocado o autor pela distância e migração: “A saudade é sua memória”. E sabe e anuncia que de longe “o Tempo atravessará / a terra / e a terra em ânsia / será o rio novamente / a sangue-frio”.
E assim a latitude de mais uma cidade, a longitude de mais um sonho, as páginas de mais um belo livro com alveolismo de Gaugui na capa de edição em formato quadrângulo, como uma moldura que estampa a “imaginação / fecunda / de voar enterrado / no chão” e pontilha as cores anis das manhãs e os pinceis alaranjados das tardes.
Diego Mendes Sousa no chão anímico de Riatla refunda o tempo e o espaço, como disserta em Aprofundamentos, poema ali no meio da brochura, sol a pino de reflexão filosófica-existencial. Refunda “a água / pela sede” de procurar; “o nada / pela alquimia” de recriar; “a saudade / pelo estrangeiro” em pleno Planalto Central do país, onde os versos nasceram com o “banzo atordoado”.
O livro é um encantamento ao andar pela “cidade agarrada / aos sonhos marítimos / em suas ruas estreitas”. A água molha minhas retinas a cada página navegada que passo, seguindo o autor como “marujo embarcado no mar e no sol”.
Diego atravessa mares para afogar pesares; revisita em seus deltas o azul da infância; vislumbra na distância o cais - esse círculo da vida, chegada e partida de pedra e nuvem, onde tudo é memória.
Mas “Nunca se termina / o sublime desse rio”, mesmo regressando ao porto e sua história, onde acenam "a amabilíssima avó Maria" e os "prepostos fantasistas". Aprende-se na navegação que “terminar não rima / com o oceânico”: a vida, o amor, a morte. E Diego cartografa esse sentimento e dimensão com a airosidade de uma escrita pulsante com o barulho do mar de Riatla que ouvimos.
Terminei a leitura e continuei pela cidade.
Essa é a grandeza da poesia: quando o poeta ausculta o coração do leitor, quando este cumplicia-se na “tristeza estremecida”, infiltra-se no “sono agônico” e delicia-se nos “verbos de viver”.
Em Riatla, o poeta, eu, tu e eles, “éramos nós que / passávamos e / não o tempo”.