sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

a vida como inspiração


“O cinema não surge do nada, nem se pode fazer bons filmes de costas para o mundo”, disse Cacá Diegues em um trecho da entrevista à jornalista Maria Silvia Camargo, publicada no livro O que é ser diretor, um dos títulos da série de memórias profissionais da Editora Record, 2004.
O cineasta revela que Chuvas de verão, 1978, um dos mais belos filmes sobre a terceira idade, foi inspirado em sua tia, uma solteirona que adorava cantar Caminhemos, de Herivelto Martins (“Não, eu não posso lembrar que te amei / Não, eu preciso esquecer que sofri”). Cacá tinha um carinho maternal por ela, adorava visitá-la, e se envolver no afeto das conversas daquela mulher, doce e romântica, sempre muito sonhadora, mesmo em idade avançada.
A relação de amizade, amor e respeito da personagem Isaura (Miriam Pires) com o vizinho aposentado (Jofre Soares), entra em nossos olhos com o mesmo sentimento de pertencimento que temos por alguém da família.
O argumento para Bye bye Brasil, de 1979, onde três artistas ambulantes (magníficas interpretações de José Wilker, Betty Farias e Fábio Jr.) cruzam o Nordeste fazendo espetáculos para camponeses, cortadores de cana, índios etc, sempre fugindo da concorrência da televisão, surgiu quando o diretor estava filmando Joana Francesa, em 1972, no interior de Alagoas, seu estado natal. Uma noite, quando Cacá voltava das filmagens num canavial e entrava na pequena cidade onde a equipe estava hospedada, viu quase toda população na pracinha, em profundo silêncio, boquiaberta, olhos arregalados diante um aparelho de TV, assistindo ao programa de Flávio Calvacanti, que, vestido com um impecável smoking, apresentava àquela gente pobre, a vida faustosa do Rio de Janeiro. “Dei-me conta de que estava acontecendo uma coisa muito estanha no Brasil”, reflete o cineasta. “Uma coisa muito louca e importante, na relação entre o povo e a televisão, transmitida em rede nacional”.
A Caravana Rolidei que conduz a trupe atravessando a Amazônia até chegar a Brasília, representa a lúcida conscientização e brava resistência na mais fiel cartografia social das entranhas do país traçada pelo cinema brasileiro.
Cacá Diegues partiu hoje aos 84 anos. Tentei não parafrasear o título dessa obra-prima, “Bye bye Cacá”, ao ver em minha estante que ele continua em seus filmes e seus livros de análises, depoimentos e memória. Mas a saudade de quem admiramos, como referência e com reverência, tem reprise diária em nosso coração.
Acima, cineasta no intervalo das filmagens de Bye bye Brasil. Foto: Zeca Guimarães.

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