sábado, 22 de fevereiro de 2025

"Não há resistência sem a memória"


disse no passado sobre o amanhã o visionário Jean-Luc Godard.
É esse o sentimento que se espalha em meu peito ao acompanhar a restauração dos meus curtas-metragens Um cotidiano perdido no tempo (1988) e O último dia de sol (1999), rodados em películas 35mm, no Museu de Imagem e Som do Ceará.
David Felício, Gabriela Dantas, Gabriel Dantas, Alan Emmanuel, Camile Abreu, Ítalo de Sousa e Mariano Batista, da equipe do Laboratório de Preservação, Conservação e Digitalização, fazem um trabalho de ourivesaria na preciosidade do celuloide.
Cada lata aberta é como uma mensagem numa garrafa jogada ao mar chegando ao futuro, à civilização desses jovens empenhados na preservação da história do cinema cearense.
Na cena acima, de O último dia de sol, fotografia de Miguel Freire, os atores Allyson Amaral, Antonieta Noronha, Dora Gorovitz e Ademir Miranda.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

a vida como inspiração


“O cinema não surge do nada, nem se pode fazer bons filmes de costas para o mundo”, disse Cacá Diegues em um trecho da entrevista à jornalista Maria Silvia Camargo, publicada no livro O que é ser diretor, um dos títulos da série de memórias profissionais da Editora Record, 2004.
O cineasta revela que Chuvas de verão, 1978, um dos mais belos filmes sobre a terceira idade, foi inspirado em sua tia, uma solteirona que adorava cantar Caminhemos, de Herivelto Martins (“Não, eu não posso lembrar que te amei / Não, eu preciso esquecer que sofri”). Cacá tinha um carinho maternal por ela, adorava visitá-la, e se envolver no afeto das conversas daquela mulher, doce e romântica, sempre muito sonhadora, mesmo em idade avançada.
A relação de amizade, amor e respeito da personagem Isaura (Miriam Pires) com o vizinho aposentado (Jofre Soares), entra em nossos olhos com o mesmo sentimento de pertencimento que temos por alguém da família.
O argumento para Bye bye Brasil, de 1979, onde três artistas ambulantes (magníficas interpretações de José Wilker, Betty Farias e Fábio Jr.) cruzam o Nordeste fazendo espetáculos para camponeses, cortadores de cana, índios etc, sempre fugindo da concorrência da televisão, surgiu quando o diretor estava filmando Joana Francesa, em 1972, no interior de Alagoas, seu estado natal. Uma noite, quando Cacá voltava das filmagens num canavial e entrava na pequena cidade onde a equipe estava hospedada, viu quase toda população na pracinha, em profundo silêncio, boquiaberta, olhos arregalados diante um aparelho de TV, assistindo ao programa de Flávio Calvacanti, que, vestido com um impecável smoking, apresentava àquela gente pobre, a vida faustosa do Rio de Janeiro. “Dei-me conta de que estava acontecendo uma coisa muito estanha no Brasil”, reflete o cineasta. “Uma coisa muito louca e importante, na relação entre o povo e a televisão, transmitida em rede nacional”.
A Caravana Rolidei que conduz a trupe atravessando a Amazônia até chegar a Brasília, representa a lúcida conscientização e brava resistência na mais fiel cartografia social das entranhas do país traçada pelo cinema brasileiro.
Cacá Diegues partiu hoje aos 84 anos. Tentei não parafrasear o título dessa obra-prima, “Bye bye Cacá”, ao ver em minha estante que ele continua em seus filmes e seus livros de análises, depoimentos e memória. Mas a saudade de quem admiramos, como referência e com reverência, tem reprise diária em nosso coração.
Acima, cineasta no intervalo das filmagens de Bye bye Brasil. Foto: Zeca Guimarães.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

marcada para viver


A história da paraibana Elizabeth Altino Teixeira no combate à violência agrária e à impunidade começou em 1962, após o assassinato do marido, o fundador da Liga Camponesa João Pedro Teixeira.

“O João sempre me pedia para dar continuidade à luta, eu não respondia. Na hora da morte, ele segurou na minha mão e eu disse sim. Nem pensei que eu estava sozinha para criar onze filhos”, conta com serenidade e saudade. Para não ter o mesmo fim do marido, com o golpe militar de 1964, Elizabeth foi viver na clandestinidade, no interior do Rio Grande do Norte, com o falso nome de Marta Maria Costa.
Quando era militante chegou a ser convidada por Fidel Castro para morar com a família em Cuba. Determinada, agradeceu respondendo que tinha uma missão no Brasil: “Lutar pelo direito à terra.”
A trajetória de ambos foi resgatada pelo cineasta Eduardo Coutinho no filme Cabra marcado para morrer, rodado inicialmente em 1964 e finalizado em 1984. Elizabeth é protagonista da história de perseguição no campo e de repressão política sofrida pelo marido.
“Perdi a conta de quantas vezes fui presa e vi a morte de perto, mas o que mais doeu nessa vida toda foi ter passado mais de 16 anos longe dos meus filhos”, relembra. Nove deles foram criados pelo seu pai.
No dia 9 de março de 2006, durante o primeiro mandato do presidente Lula, dona Elizabeth foi homenageada no Congresso Nacional, recebendo o diploma Mulher-Cidadã Betha Lutz por ocasião do Dia Internacional da Mulher.
Lúcida, completa hoje 100 anos marcados para viver. Mora em João Pessoa numa casa doada por Eduardo Coutinho logo após as filmagens.
Fotos: Kátia Dumont, 2024 / Dona Elizabeth e seus filhos, em Sapé, PB, 1962, Acervo Instituto Moreira Salles

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

domicilio em Canoa


O meu poema, a música de Charles Wellington , o traço de André Dias, que criou o clipe.
Selecionado para o mostra competitiva do 14° Festival Latino-Americano de Cinema de Canoa Quebrada, o Curta Canoa, será exibido na programação de hoje.
Todos domiciliados no mesmo espaço do afeto. 

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

o expresso na linha do tempo

Em 1970 Gilberto Gil estava em Londres, exilado. Num dia de saudade mais apertada do Brasil, escreveu num caderno: "Começou a circular o expresso 2222 que parte direto de Bonsucesso pra depois". E parou por aí. Não conseguiu continuar viagem. Não à toa, deixou "pra depois".

O verso inicial veio da lembrança de sua infância, dos percursos que fazia nos trens da Companhia Leste Brasileira em Salvador, em Ituaçu, em Nazaré das Farinhas. O cantor recorda-se de uma locomotiva com a numeração 222, apitando nas estações, nas curvas, nas distâncias. Acrescentou um 2 na largura da saudade.
Um ano depois Gil pegou o caderno e a canção veio de uma vez, prosseguindo a viagem pela memória, tentando encurtar o tempo em cada verso que surgia.
Bonsucesso entra como rima e solução, pois o cantor marca a geografia afetiva do bairro que gostava no Rio de Janeiro.
A "menina", fictícia e verdadeira da beleza brasileira, chega na segunda parte como mudança rítmica, encadeando os vagões das estrofes, nos trilhos "que não têm fim" pela ausência de casa, quintal e roseira.
Expresso 2222 foi gravada no disco homônimo, lançado em julho de 1972, o cantor já de volta ao Brasil em janeiro daquele ano sombrio.
Gil e Caetano voltaram no período mais cruel da ditadura.
"Até onde essa estrada do tempo vai dar", refletia o expresso na chegada.

domingo, 9 de fevereiro de 2025

a caverna em que vivemos


Em 2000 José Saramago lançou o ótimo A caverna, romance ambientado naquele fim de milênio, em que, através da história de uma família proprietária de uma olaria ameaçada com a chegada de um shopping center, disseca em paralelos o mito de Platão. O moderno centro comercial é fisicamente comparado a uma caverna.

No ano seguinte o escritor foi um dos entrevistados para o documentário Janela da alma, produção franco-brasileira, de João Jardim e Walter Carvalho.
No trecho acima, uma curta, profunda e assustadora reflexão de Saramago sobre a caverna nossa de cada dia.

domingo, 2 de fevereiro de 2025

pra gente sair da lama

Foto: Memorial Chico Science

Chico Science dizia que com um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar.
E nada mais ficou como antes no mangue do Capibaribe depois de seu beat acelerado, juntando no mesmo ritmo e percussão, o pop, o hip hop, o eletrônico, o rock, o baião, o coco e a embolada, o samba e o maracatu, "bom pra mim e bom pra tu", as raízes da cultura nordestina, trazendo da lama ao caos e do caos à lama o seu manifesto de caranguejos com cérebro.
28 anos tinha um poste no meio do caminho de Francisco de Assis França, que continua Chico, sempre Science, eterno afrocibertelia.

Odoyá

 
Foto: Arquivo Correio24horas

Ela mora no mar
ela brinca na areia
no balanço das ondas
a paz ela semeia...
- Versos de Lenda das sereias, rainhas do mar, de Vicente Mattos, Dinoel Sampaio e Arlindo Velloso, samba-enredo composto em 1976 para a Império Serrano, gravado em compacto simples pela Tapecar Gravações S.A., interpretação de Vicente Mattos, também originalmente por Roberto Ribeiro e Sobrinho.
Uma das gravações mais conhecidas é a de Marisa Monte, ao vivo, em seu primeiro disco, MM, 1989, que por ser portelense não canta o verso "Vê o Império enamorado".
Apesar do gênero de parte do repertório marcante de Clara Nunes, ela não gravou essa música.
2 de fevereiro, Dia de Iemanjá, a Rainha do Mar nas religiões afro-brasileiras.
Na religião católica Dia de Nossa Senhora dos Navegantes, das Candeias, da Candelária, da Luz, da Purificação...
Uma senhora em todas. Todas senhoras em uma. A paz ela semeia.
São Rainhas do Mar.

sábado, 1 de fevereiro de 2025

quando fevereiro chegar

 

Februus, deus dos mortos, da purificação na mitologia etrusca.

Deus dos rituais purificatórios nas cidades, dos sacrifícios como limpeza d'alma.
A chama continua no ar
o fogo vai deixar semente
a gente ri, a gente chora...
- Fausto Nilo em Chorando e cantando, 1996