terça-feira, 28 de janeiro de 2025

eu sei, mas não devia


A escritora Mariana Colasanti gravou o vídeo acima às vésperas de completar 80 anos. Achava que não chegaria a tanto, disse. A vida prorrogou mais sete anos.

Passo agora a conviver com sua ausência e sua presença em seus livros em minha estante, esses passadiços horizontais em que se guardam dorsos verticais de tempo.
Pego o exemplar de Eu sei, mas não devia, de 1995, e leio trechos da crônica de título homônimo.
Leio no silêncio da saudade como um consolo dela para mim.
“Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia. (...) A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. (...) A gente se acostuma, para poupar a vida.”
Sua literatura chegou ao meu coração, como ela desejou.

sábado, 25 de janeiro de 2025

fonte das águas


É o fundo do poço, é o fim do caminho / no rosto um desgosto, é um pouco sozinho...

- Tom Jobim, em Águas de março, gravada inicialmente em 1972, no compacto simples Disco de Bolso, um projeto d’O Pasquim (de um lado, O Tom de Jobim, no outro, O Tal de João Bosco, com Agnus Dei), e no disco Matita Perê, que o autor lançou um ano depois pela Philips/Phonogram.
Em 1974 a canção ficou mais conhecida com a gravação no LP Elis & Tom, Philips.
No livro Tons sobre Tom, de Marcia Cezimbra, Tessy Callado e Tarik de Souza, resultado de 12 horas de entrevista com o maestro, publicado em 1995 pela Editora Revan, revela como foi composta essa obra-prima, inspirada depois de um dia cansativo de Tom preparando o repertório de Matita Perê.
Isolado no sítio do Poço Fundo, em São José do Vale do Rio Preto, região serrana do Rio de Janeiro, o compositor comentou com Thereza, sua então esposa, ao voltar de uma caminhada pelo mato: “é pau, é pedra, é o fim do caminho"... e a letra começou a ser rascunhada num papel pardo de embrulho que estava à mão do autor.
Falecido em 1994 aos 67 anos, hoje celebra-se o aniversário de 98 de nascimento.
Acima, o maestro à beira do Rio Preto, 1987. Foto de Ana Lontra Jobim, do livro Ensaio Poético: Tom e Ana Jobim, Editora Jobim Music, 1987.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

discurso de Rubens Paiva


 "O filme é o corpo do Rubens, que nunca foi encontrado"

- Selton Mello

estamos aqui

 

Ainda estou aqui

de Walter Salles, Brasil, 2024

Baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva

Indicações ao Oscar 2025:
- Melhor Filme
- Melhor Filme Estrangeiro
- Melhor Atriz (Fernanda Torres)
Viva Eunice Paiva!
Viva Rubens Paiva!

ela está lá


 

domingo, 19 de janeiro de 2025

apóstolos do cinema


Acima, criativa e ousada paródia da imagem de A Última Ceia, afresco de Leonardo Da Vinci, do século 15.

Segundo as Escrituras do Catolicismo, o quadro representa a última refeição que Cristo dividiu com seus apóstolos em Jerusalém antes de sua crucificação.
Na colagem criada pelo site de cinema Film Kafası, da Turquia, que serve de capa da página, vários cineastas pousam de apóstolos, referenciando o Mestre anfitrião, representado pelo vanguardista e polêmico Jean-Luc Godard.
Legendando os convidados, da esquerda para a direita:
F. W. Murnau (Bartolomeu),
Krzysztof Kieślowski (Tiago Menor),
Glauber Rocha (André),
Lars Von Trier,
Ingmar Bergman (Judas Escariotes),
Serguei Eisenstein (Pedro),
Paul Thomas Anderson (João),
Godard (Cristo),
Billy Wilder,
Federico Fellini (Tiago Maior),
David Lynch (Tomé),
Orson Welles (Felipe),
Stanley Kubrick,
Andrei Tarkovski (Mateus),
Alfred Hitchcock (Judas Tadeu)
e Akira Kurosawa (Simão).
Nessa versão da foto, Trier, Wilder e Kubrick pousam de apóstolos que não existem no clássico original renascentista. O cinema sempre com seus extras.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

meditando com David Lynch



O diretor de filmes instigantes e magníficos, como Veludo azul (Blue velvet), 1986, Cidade dos sonhos (Mullohand drive), de 2001, Império dos sonhos (Inland empire), 2006, é um artista multifacetado, igualmente talentoso como fotógrafo, artista plástico, ator, compositor, cantor e escritor.
Em 2008 David Lynch esteve no Brasil, foi entrevistado no programa Roda Viva, por ocasião do lançamento do seu livro Águas profundas: criatividade e meditação (Gryphus Editora), uma compilação de vários textos que define como uma espécie de "autoajuda" para difundir a paz mundial. Em se tratando de David Lynch é recomendável levar a sério o que chama de "autoajuda".
A publicação trata de questionamentos sobre o sofrimento, tensão, raiva, conflitos no mundo em que vivemos, em um tom autobiográfico.
Lynch faria 79 anos na próxima segunda-feira, 20. Não deu tempo.
Do seu livro destaco um trecho que sublinhei e meditei. Relendo, entendo como ele enfrentava, com altivez e resignação, o problema de saúde, quando ano passado um diagnóstico revelou enfisema pulmonar:
"O cineasta não tem que sofrer para mostrar o sofrimento, deixe o sofrimento para os seus personagens''.
No teaser abaixo, David Lynch canta Cold wind blowin' que ele gravou no disco The big dream, de 2013.
"Tem um vento frio / soprando em meu coração. / O jogo acabou"

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

coreografia das pérolas



A mergulhadora e cineasta francesa Julie Gautier dança por seis minutos e 30 segundos a 40 metros de profundidade numa piscina, no curta-metragem Ama (“mulher do mar”, em japonês), filmado por Jacques Ballard, lançado em 2018 em festivais na Europa.
Julie com seu trabalho homenageia quem a inspirou: as mulheres que seguindo uma prática milenar no Japão, coletam pérolas e conchas no oceano, sem equipamento de mergulho.
Para executar a coreografia criada por Ophélie Longuet, a cineasta fez vários mergulhos de 1 minuto e meio. Somente o fotógrafo usou cilindro de oxigênio.
A música é do compositor italiano Ezio Bosso, trecho inicial da faixa de 11 minutos, Rain, in your black eyes”, gravada no disco And the things that remain, de 2016.
A vida e morte de Bosso, aos 48 anos, em 2020, por uma doença neurodegenerativa, que o fez perder o controle de dois dedos e, portanto, não conseguia mais tocar como antes, é outro mergulho comovente na história de um artista e sua genialidade. Foi um dos maiores compositores da música erudita contemporânea. Vê-lo tocar, mesmo com as limitações físicas, era impactante. Performático, como um maestro sentado ao piano, com seu corpo sobre o instrumento, numa união orgânica e anímica.
Sempre que revejo esse curta de Gautier e Ballard, considero uma afetuosa homenagem ao legado de Ezio Bosso, mesmo filmado dois anos antes de sua partida, quando se agarrava na mais profunda luta contra a doença.
Ama: a dança da câmera como uma concha, a coreografia como pérolas flutuando, a música de Ezio Bosso como imagem, imantam e banham o silêncio da alma de quem assiste.

sábado, 11 de janeiro de 2025

de poeta para poeta


Quando conheci Nirton Venancio, o abraço foi o de amigos de muito tempo, tamanha a emoção de nosso encontro frente a frente.
Quem nos pôs em rota de celebração mútua foi o fundamental Alan Mendonça, quando, pouco tempo antes, me possibilitou participar de vivências poéticas virtuais realizadas pela Editora Radiadora, pelos 2020 impossíveis de esquecer.
Foi também Alan quem me possibilitou o apaixonamento pela poesia "nada transitória", como costumo repetir, emergida por Nirton.
Nirton Venancio tem ares tímidos e uma doçura inigualável. A poesia dele é algo extraordinariamente envolvente. De tal maneira nos toma o espírito e as pulsações que não nos satisfazemos com uma leitura somente de seus versos.
Já disse a ele: Poesia provisória e Trem da memória estão sempre por perto, porque se tornaram importantes para mim, tal qual a poesia que também pulsa no poeta Alan Mendonça.
As duas páginas posta aqui são excertos do livro Trem da memória. Reparem na sutileza das imagens criadas, na inquietante e precisa seleção vocabular, no poético e emocionante tratamento que esse poeta dá às suas memórias.
Saboreiem os excertos e, depois, invistam na leitura plena de Trem da memória. O livro está disponível no site da Radiadora.

- Chico Araújo, poeta 

 

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

vida cabralina


Fotos: BBC News Brasil


Abro um dos cadernos onde anoto datas de chegadas e partidas de escritores, e vejo que hoje completam 105 anos de nascimento do poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto. Esse meu hábito cartorial afetivo faz-me sempre estar em contato com minhas referências e assim reverenciá-los.
Lembrei-me de um fato inusitado em sua vida.
Em 1952 João Cabral servia na embaixada em Londres. Nas pausas dos trabalhos burocráticos, lia poemas de Dylan Thomas, assistia a filmes de Alfred Hitchcock, não perdia os jogos do Chelsea, e colaborava com a revista do Partido Trabalhista inglês.
Foi para uma edição desse periódico que Cabral escreveu ao colega Paulo Cotrim Rodrigues Pereira, lotado em Hamburgo, Alemanha, pedindo-lhe um artigo sobre a economia brasileira. No trânsito entre as mesas, a carta passa pelas mãos de Mário Calábria, diplomata então secretário de Guimarães Rosa na embaixada.
Suspeitando de uma célula comunista no Itamarati e que o poeta pernambucano faria parte com outros diplomatas, entre eles o filólogo Antônio Houaiss, Calábria mandou cópias para Estado-Maior do Exército Brasileiro e para o jornalista Carlos Lacerda, notório opositor de Getúlio Vargas. Resoluto em atacar o governo via embaixadas, Lacerda divulga a carta em seu jornal, Tribuna da Imprensa, com a estrondosa manchete: "Traidores no Itamarati".
João Cabral, perplexo, foi afastado de suas funções, chamado ao Brasil para responder a um inquérito e colocado em disponibilidade sem vencimentos. Até 1954, quando foi reintegrado, por decisão do STF, o poeta, com mulher e três filhos, sobreviveu escrevendo editoriais e obituários para os jornais Última Hora, de Samuel Wainer, e A Vanguarda, de Joel Silveira.
De volta à diplomacia, João Cabral foi para Barcelona. Viveu sua carreira diplomática, de 1945 a 1990, por 14 países, como cônsul e embaixador. Sua paixão era, declaradamente, a Espanha, principalmente em Servilha, onde dizia se sentir em casa.
Gostava de assistir touradas, e comparou a lida na arena com o ofício da escrita. Em entrevista a José Castello, autor da biografia João Cabral de Melo Neto: O homem sem alma, disse: "O poeta é como o toureiro, precisa viver medindo forças com a morte, ou não vive".

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

"De que precisaria a poesia brasileira?"


 

- A poesia brasileira precisa de dinheiro. Precisa de uma estrutura econômica estável como alicerce. Precisa de que o Brasil seja rico e autoconfiante e independente em todos os sentidos. Precisa de universidades, enciclopédias, dicionários, editores, cultura humanística, museus, bibliotecas, público inteligente, críticos de verdade, agitação, coragem. Precisa de contar com uns poetas que leiam grego, com outros perseguidos pela polícia e com uns terceiros que leiam provençal e ameacem a sociedade. Isso sem contar com uns dois ou três cuja poesia fale à alma do povo.
Resposta do poeta piauiense Mário Faustino à pergunta de um hipotético leitor de seus poemas.
O trecho está na página 265 de Mário Faustino – Uma biografia, da poeta e professora de Literatura da Universidade Federal do Pará, Lilia Silvestre Chaves.
Resultado de sua tese de doutorado, o livro foi publicado em 2004, pela Secretaria de Cultura do Pará, em tiragem limitada. Raridade em sebos literários.
Até o momento é o único estudo biográfico de um dos mais autênticos poetas brasileiros, de relevância singular na terceira geração do Modernismo, autor de um único livro, O homem e sua hora, 1955. Também jornalista, tradutor e crítico literário, Faustino morreu precocemente, aos 32 anos, em acidente aéreo nos Andes peruanos quando viajava a trabalho para Cuba e México, em 1962.
A tarefa de Lilia Silvestre, que pela natureza de pesquisa acadêmica desenvolveria mais para um estudo crítico, segue naturalmente por outro lado, meandros e labirintos da vida do poeta: fotos, cartas, as relações familiares, principalmente com uma das irmãs, que teria vendido todos os seus pertences e desaparecido; a homossexualidade assumida e discreta, e seu grande amor Oswaldo, com quem conviveu no período em que trabalhou na ONU, como correspondente do Jornal do Brasil; sua dedicação à traduções de grandes nomes da literatura mundial, como Dylan Thomas e Ezra Pound.
Três anos antes de falecer, decepcionado com os rumos de seu trabalho de pesquisa e reflexão sobre a poesia, Faustino dedicou-se mais ao jornalismo. É desse período a resposta ao leitor hipotético.
Uma lembrança oportuna para hoje quando se comemora o Dia do Leitor, hipotético ou não.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

ela chegou lá



 "Eu cheguei de muito longe
E a viagem foi tão longa
E na minha caminhada
Obstáculos na estrada
Mas enfim aqui estou"

domingo, 5 de janeiro de 2025

ex libris Umberto Eco




“Tenho muitas experiências que são, penso eu, comuns a todos que possuem muitos livros (agora tenho cerca de quarenta mil volumes, entre Milão e minhas outras casas) e a todos que consideram uma biblioteca não apenas um lugar para guardar livros que já leu, mas principalmente um depósito para livros a serem lidos em alguma data futura, quando sentir necessidade de lê-los. Muitas vezes acontece que nossos olhos caem em algum livro que ainda não lemos, e ficamos cheios de remorso”.

- Umberto Eco em Sobre a literatura (Record, 2002), livro de ensaios e discursos proferidos ao longo de sua ilustre carreira.
O escritor busca entender a química de sua paixão pela palavra. De reflexões sobre Ptolomeu e "a força do falso" a considerações sobre a escrita experimental de Borges e Joyce, a inteligência luminosa e o conhecimento enciclopédico de Eco estão em exibição deslumbrante por toda parte. E quando ele revela suas próprias ambições e superstições, suas ansiedades e medos autorais, sentimo-nos no jardim da literatura que ele tantas vezes alude.
Acima, sequência de abertura do documentário Umberto Eco: Uma biblioteca do mundo, de Davide Ferrario, 2022.
Eco caminha pelos corredores abarrotados de livros de sua casa em Milão, em busca de um determinado volume que encontra entre mais de 50 mil (atualizando o número que ele disse no texto de 2002).
A filmagem foi realizada em 2015, um ano antes de partir, aos 84 anos, para a grande biblioteca, como Borges imaginava o Paraíso.
Hoje, 93 volumes de seu nascimento.
 

sábado, 4 de janeiro de 2025

a última viagem

 Foto: Acervo Collection Catherine et Jean Camus

Na manhã de 4 de janeiro de 1960 o escritor franco-argelino Albert Camus comprou passagem de trem de Villeblevin à Paris. Iria em companhia de seu amigo, o poeta René Char, a quem considerava o maior desde Rimbaud e Apollinaire. Seriam 105 quilômetros de boa conversa sobre literatura enquanto da janela admiravam a paisagem verde riscando de leve. Imagino a cena e sento-me no banco detrás, observando cada gesto, ouvindo cada palavra.
Mas Camus de última hora aceitou o convite do seu editor Michel Gallimard e entrou no sedã Facel Vega Excellence. Completavam a lotação a esposa e a filhinha de Michel e o cachorro. Já perto da cidade Sens, o carro repentinamente rodopia, descontrola-se em direção a uma árvore, bate em outra e se arrebenta. O escritor morre na hora, o editor dias depois, a mulher e a menina se salvam e o animal sai em disparada. Nunca o encontraram.
A primeira vez que li sobre as circunstâncias de sua morte, entrei em reflexões e perplexidades sobre as ironias, sortilégios e artimanhas do universo.
Ao lado do corpo de Camus, a maleta com os originais manuscritos do romance autobiográfico que estava escrevendo, uma espécie de testamento literário e político de suas origens na Argélia, O primeiro homem. Numa anotação visionária, registrou nas primeiras páginas que aquele livro não deveria ficar inacabado. Foi publicado por sua filha, Catherine Camus, em 1994. O escritor sempre comentava com os amigos que "nada é mais escandaloso do que a morte de uma criança, e nada mais absurdo do que morrer num acidente de automóvel".
No capítulo I desse livro postremo, há um trecho em que considerações sobre o sentido da vida, sobre o efêmero que somos e o eterno que pretendemos, se acentua como prólogo de uma dissertação filosófica que se desenvolve ao longo dessa busca proustiana. Jacques Cormery, o personagem quarentão alter ego de Camus, depois de visitar o túmulo do pai que não conheceu, vai à casa do amigo Victor Malan, alfandegário aposentado, a quem devota atenção.
- Quando se tem 65 anos, cada ano é uma prorrogação. Gostaria de morrer tranquilo, e morrer é assustador. Eu nada fiz. – Diz o amigo.
Jacques, com o olhar filial, contrapõe com apreço e reconhecimento.
- Há pessoas que justificam o mundo, que ajudam a viver só com sua presença.
Albert Camus teve um final absurdo e seu tempo não foi prorrogado, mas os intensos 46 anos vividos e sua obra justificam o mundo.