Usando uma linguagem mais apropriada à escrita do século 19, neste domingo, 29 de setembro, completam 116 anos do passamento de Machado de Assis.
De sua vasta e monumental
literatura, lembrei-me do conto Uns
braços, inserido na coletânea Várias
histórias, originalmente publicada em 1896. Assim como os outros quinze que
compõem o volume, são contos que Machado publicou de 1984 a 1891 no jornal carioca
Gazeta de Notícias. Veio-me à lembrança porque o núcleo do enredo se desenvolve
num domingo.
O conto narra as agruras e encantamento
do adolescente Inácio, de “quinze anos feitos e bem feitos”, por Dona Severina,
com “vinte e sete anos floridos e sólidos”, esposa de seu patrão, o advogado Borges,
sempre zangado e grosseiro, que trata o rapaz com rispidez quando não faz o
serviço do seu jeito e a tempo. Inácio fora trabalhar ajudante e escrevente por
recomendação do pai, na esperança que o filho fizesse carreira e chegasse ao
foro, “porque lhe parecia que os procuradores de causa ganhavam muito”.
Morando num quarto nos fundos da
casa do casal, Inácio por várias vezes ensaiou ir embora, cansado dos impropérios
do patrão. Sempre desistia da ideia porque estava confuso e apaixonado por Dona
Severina, mais exatamente pelos delicados braços que ela deixava desnudos,
costume ousado para a época. “Alguma cousa que deve sentir a planta, quando
abotoa à primeira flor”, analisa Machado o deslumbramento do rapaz.
Inácio só via Dona Severina três
vezes ao dia, à mesa durante as refeições. Ela começou a notar os olhares no
par de braços, sempre à mostra “meio palmo abaixo do ombro”. O jovem tem
cuidado, dissimula o gesto, pois “Nunca ele pôs os olhos (...) que não
esquecesse de si e de tudo”. Dona Severina aos poucos encanta-se também com aquele
fascínio, percebe “que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido
pelos limiares sociais”. Numa noite, durante o jantar, viu “que entre o nariz e
a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço”, boca para ser “afagada
e beijada”. “Uma criança!”, reage a mulher, refutando o pensamento que “abateu-lhe o alvoroço do
sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos sentidos.”
“Mas há ideias que são da família
das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousa”,
compara Machado ao colocar Dona Severina cedida à “tentação diabólica”. Uma
noite ela vai ao quarto do rapaz. Adentra silenciosamente e o encontra
adormecido na rede, “a cabeça inclinada, o braço caído” e um folheto que foi
chão quando o sono bateu. Dona Severina achou-o “muito mais bonito que acordado”.
Aproxima-se, pega-lhe as mãos, e inclinando-se, “abrochou os lábios e
deixou-lhe um beijo na boca”. O rapaz não acorda. Ela levanta-se, foge à porta,
“vexada e medrosa”.
Teria Inácio sonhado aquele encontro
secreto e ousado? Ou “Dona Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do
rapaz”? A genialidade de Machado de Assis minudencia uma narrativa que deixa o
leitor com mesma pergunta se Bentinho foi ou não traído por Capitu, em Dom Casmurro. É igualmente um dos mais
belos e criativos questionamentos da literatura brasileira. A ambiguidade que
mostra o ser humano emaranhado nas emoções que misturam o real e o imaginário.
Inácio, no dia seguinte, acha que sonhou naquela noite. Era domingo, ele nunca esqueceu. “O dia estava lindíssimo. Não era um domingo cristão, era um imenso domingo universal”.
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