domingo, 31 de março de 2024

60 anos esta noite


Na madrugada de 1º de abril de 1964, dia seguinte ao golpe militar no Brasil, um ativista político foge com a esposa e o filho pequeno. Esse é o storyline de O último dia de sol, curta-metragem que realizei em 1999. Filmado em película 35mm, preto e branco, a ação, com roteiro baseado em fatos da minha memória, passa-se em uma pequena cidade do interior cearense.

A narrativa dos 18 minutos, conduzida pelo olhar do menino de 9 anos, sintetiza o que se passou naquela noite no país e os tempos de chumbo que viriam. Foram duas décadas de arbitrariedades, de prisões, de torturas, de mortes, de “suicídios”, de corpos em valas comuns, sumidos, jogados ao mar. Há 60 anos que pais não têm seus filhos de volta, que filhos não conhecem seus pais, que brasileiros perderam o passado em cárceres e ainda ecoam em seus ouvidos a ira de seus carrascos. A tortura como instrumento do Estado, foi uma marca registrada do governo militar.

O filme recebeu os prêmios de melhor fotografia (Miguel Freire) no 4º Festival de Cinema e Vídeo de Curitiba; melhor direção de arte (Jefferson De Albuquerque Junior) no 10º Cine Ceará; melhor filme nacional conferido pela Organização Católica Internacional de Cinema, no 23° Guarnicê de Cinema e Vídeo do Maranhão.

Representou o Brasil no Festival de Cine y Video de Derechos Humanos (Argentina), 2000; Festival Internacional de Cinema de Mar del Plata (Chile), 2000; Festival de Cine de La Habana (Cuba), 2000; Mostra 40 anos do Golpe Civil-militar no Brasil, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 2004; Painel Ditaduras na Mostra de Curtas Brasília em Plano Aberto, CCBB, Brasília, 2018; e convidado para exibição na solenidade de pagamento de 31 ex-presos políticos indenizados pelo Governo do Estado do Ceará, Auditório do Palácio Iracema, Fortaleza, 2006.

Programado no Curta Brasil da TVE, em 2000, a jornalista, pesquisadora e professora Ivana Bentes observou que é o primeiro filme que tem enredo no dia do golpe.

Acima, o teaser criado por Rui Ferreira para a Mostra Plano Aberto.

Aqui o link para a ver na íntegra no meu canal na plataforma Vímeo: 

https://vimeo.com/329724742?share=copy 

quinta-feira, 28 de março de 2024

desembarque


O trem chegou à estação João Felipe
e continua nos trilhos de minha vida.
Na capital
as bancas com suas notícias
a Cruzeiro com a miss na capa
os cowboys destemidos da EBAL.
Puxo os vagões da memória até quando?
O poema não acaba nunca.
O que escrevo são incompletudes:
há sempre quem lembro
e volto a sua casa
peço água e pergunto se sabe de mim
- o neto da costureira, o filho do bodegueiro
há sempre quem deslembro
e bate a minha porta
nada pede e pergunta se conheço quem foi
- o pai de Lourim, o avô de Fransquim.
Vocês não sabem
o peso e a pluma que são?
o chão e o pássaro que vão?
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Trecho do meu livro Trem da memória (Editora Radiadora, 2022).
À venda pelo site www.radiadora.com.br e com o autor.
Em Fortaleza: Livraria Leitura (Shopping Iguatemi) e Livraria Arte & Ciência (av. Treze de Maio, 2400).

 

sexta-feira, 22 de março de 2024

a próxima estação


Fortaleza seria logo ali
depois da bica do Ipu
passando o arco de Sobral
chegando nas bananeiras de Caucaia
Fortaleza seria logo além
da saudade do quintal de Ibiapaba
da lembrança da cancela na fazenda
da memória da casa amarela de oitão
Fortaleza seria logo aquém
do meu pai que esperava
de minha mãe que guardava
do irmão que me olhava.
A cidade grande fez o menino ficar espichado.
Foi lá onde as vogais do interior
encontraram as consoantes das ruas.
Foi lá que o minúsculo das cartilhas
juntou-se aos maiúsculos das pessoas.
Foi lá em Fortaleza,
onde meu sertão virou mar.
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Trechos do meu livro “Trem da memória” (Editora Radiadora, 2022)
À venda pelo site www.radiadora.com.br e com o autor.
Em Fortaleza: Livraria Leitura (Shopping Iguatemi) e Livraria Arte & Ciência (av. Treze de Maio, 2400).

quinta-feira, 14 de março de 2024

cinema em transe



“Não há ninguém que se pareça com ele, nem de perto, no cinema de hoje - a força de sua obra, sua paixão intensa me fazem falta. Meu primeiro encontro com a obra de Glauber Rocha foi seu marcante Terra em transe (1967), que ajudei a restaurar vinte e cinco anos após sua estreia. O filme leva o espectador ao esgotamento, tão intenso e implacável é a sua confusão de sons e imagens. Até hoje nunca vi nada igual! Muito rápido me certifiquei de descobrir seus outros filmes, dos quais O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969) é o meu preferido. O engajamento pessoal de Rocha é tão grande que o estilo de seus filmes é inseparável de seu conteúdo político. Rocha não se contentava em pegar uma história e desenvolvê-la: ele criava verdadeiramente uma tapeçaria frenética de dor, cólera e sofrimento humanos que ele havia observado ao seu redor, em seu ofício tecido por sua grande inteligência.”

- Martin Scorsese em Cahiers du Cinéma, nº 500, março de 1996
Glauber e Scorsese encontraram-se três vezes, em Nova York, Los Angeles e no Festival de Veneza, em 1980. Nesse mesmo ano a artista plástica Paula Gaitán, à época sua esposa, fotografou em Portugal Glauber ao lado do cartaz do filme que o cineasta americano estava lançando, O touro indomável. A admiração era mútua. Em 1991 Scorsese posa para o fotógrafo Michael Chaiken segurando o cartaz de Deus e o diabo na terra do sol, um dos filmes restaurados juntamente com Terra em transe e O Dragão da Maldade, que receberam cópias novas em 35mm.
Hoje, 85 anos de nascimento do santo guerreiro do cinema brasileiro.

terça-feira, 12 de março de 2024

pé na estrada


Foto: Prosopee/Wikimedia Commons
 
"Num entardecer lilás caminhei com todos os músculos doloridos entre as luzes da 27 com a Welton no bairro negro de Denver, desejando ser negro, sentindo que o melhor que o mundo branco tinha a me oferecer não era êxtase suficiente para mim, não era vida o suficiente, nem alegria, excitação, escuridão, não era música o suficiente”
- Jack Kerouac em On the road, 1957, seu segundo livro, relato autobiográfico das peregrinações no interior dos Estados Unidos. O trecho está no início da Terceira Parte, quando Kerouac chega a Denver, por volta de 1949, com alguns dólares economizados de uma bolsa de estudos do governo. Ele pretendia se estabelecer na cidade, mas se sentiu muito sozinho, não encontrou seus amigos que foram para lá dois anos antes trabalhar em mercados atacadistas de frutas. Fica uns dias e ganha uns trocados carregando, sob sol escaldante, pesados caixotes com melancia para vagões-frigoríficos, e em seguida destravá-los com uma alavanca e empurrá-los por trinta metros de trilhos para saírem.
O autor escreveu On the road em ritmo ininterrupto em três semanas, numa pequena máquina com folhas de papel manteiga emendadas para não perder tempo em trocá-las, movido a benzedrina, xícaras de café e ouvindo jazz. A entrega de emoção é tanta num contrafluxo de transgressão e lirismo, que em cada página podemos ouvir as sonoridades das ruas e ver as planícies das estradas por onde Kerouac passou. O livro atravessa os Estados Unidos por inteiro, a partir da lendária Rota 66, e nos atravessa por completo a partir de uma prosa de reflexão pelo lado sombrio do sonho americano. Obra-prima que influenciou todos os movimentos de vanguarda e o comportamento da juventude da metade do século XX.
Destaquei o belo trecho acima em contraponto a citações na Internet atribuídas a Kerouac, supostamente retiradas do livro. Uma que diz que "Os únicos que me interessam são os loucos, aqueles que são loucos por viver”; outra que apregoa que “As pessoas que são loucas o suficiente para pensarem que podem mudar o mundo, são as que de fato o fazem”, esta, na verdade, dos publicitários criadores da campanha de lançamento da Apple, em 1997. Pasmem! Não existe nenhuma dessas passagens. Algum irresponsável costumizou o conceito de loucura de Kerouac e outros tantos replicam no impulso da superficialidade e pressa das redes sociais. Não leram Kerouac nem meteram o pé na estrada.
Acima, a mochila que o escritor usou nas viagens e guardava as anotações que serviram de base para o livro, vista na exposição Sur la route de Jack Kerouac : L'épopée, de l'écrit à l'écran, no Museu de Letras e Manuscritos de Paris, 2011.
Hoje, 102 anos de nascimento do mochileiro que partiu aos 47.

segunda-feira, 11 de março de 2024

dois poetas e o rio de Heráclito


Caro amigo Clauder Arcanjo.
Emocionante sua resenha sobre o Trem da memória e a escrita de Nirton Venâncio, esse nosso amigo gentleman (como você) e poeta (como você).
Interessante como você abocanha desse livro os versos mais indicativos da biografia do poeta. São belezas que só outro poeta pode avistar.
Engenhoso o confronto que faz de sua própria biografia (de você) com a dele: são duas crianças; dois sertões; dois rios; dois retirantes; dois exilados que, através da utopia poética, tentam se banhar cada qual em seu rio mais uma vez, no mesmo rio impossível de Heráclito: o passado é esse rio que não se atravessa mais.
Parabéns por sua sensibilidade poética e por saber transformar tudo isso em escrita da melhor qualidade.
Forte abraço!
Valdi Ferreira Lima, poeta
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Clauder Arcanjo, escritor, membro da Academia de Letras do Brasil. Autor de Licânia, Novenário de espinhos, Uma garça no asfalto, Cambono, O Fantasma de Licânia.
Valdi Ferreira Lima, poeta, autor de O guardador de raízes, Poemas para assobiar de longe, Apontamentos sobre o cultivo da poesia, O terceiro anonimado, Outono do quase novo.
Eles são meus dois poetas-rios de predileção onde mergulho sempre para aprender a nadar na poesia.
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Trem da memória, Editora Radiadora, 2022
À venda pelo site www.radiadora.com.br e com o autor.