segunda-feira, 29 de novembro de 2021

légua tirana

 

Pintura rupestre da Serra da Capivara, Piauí.

Trago um terço pra Das Dores
Pra Reimundo um violão
E pra ela, e pra ela
Trago eu e o coração


A poesia de Humberto Teixeira na valsa-toada de Luiz Gonzaga, Légua tirana, 1949.

domingo, 28 de novembro de 2021

a noite não adormecerá


foto Isabela Kassow

A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.

- Trecho de A noite não adormece nos olhos das mulheres, 2008, de Conceição Evaristo, publicado no livro Poemas da recordação e outros movimentos, 2017.


quinta-feira, 25 de novembro de 2021

ver e olhar


foto Henri Cartier-Bresson, Bruxelas, 1932

"A questão não é o que você olha, mas o que você vê.

- Henry D. Thoreau, poeta e filósofo estadunidense, século 19.

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

santa música


Pela crença cristã, Santa Cecília, uma abnegada mocinha de família nobre romana, cantava para Deus quando estava morrendo. Em sua homenagem é considerada a Padroeira dos Músicos. Ou da Música Sacra, como preferem os estudiosos no assunto.
No calendário litúrgico da Igreja Católica, por uma possível data relacionada ao dia de sua morte, foi escolhido 22 de novembro para a festa em sua louvação.
No Brasil comemora-se o Dia do Músico. Parabéns a todos que são músicos todo santo dia! Só eles sabem quanta abnegação para afinar e sobreviver com as cordas que o demo amassou neste país.
Acima, reprodução de St. Cecilia, óleo sobre tela do barroco Guido Reni, 1606. O quadro encontra-se no Norton Simon Museum, Califórnia.

domingo, 21 de novembro de 2021

aos homens de nosso tempo

 

um trecho de Poemas aos homens de nosso tempo

de Hilda Hilst

Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa rapacidade
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens
Entre os vossos dentes.


publicado no livro
Júbilo, memória, noviciado da paixão, 1974

sábado, 20 de novembro de 2021

resistência dos Palmares

 

“Vou enfeitar o meu corpo no seu / eu quero este homem de cor / um deus negro do Congo ou daqui...”

- Trecho de Black is beautiful, de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, gravada por Elis Regina no disco "Ela", 1971.
Hoje é celebrado o Dia da Consciência Negra, em lembrança à morte de Zumbi, do Quilombo dos Palmares, o maior da era colonial brasileira, localizado no estado de Alagoas.
Zumbi, pernambucano de origem bantu, morto pelas tropas do bandeirante Domingos Jorge Velho em 1695, foi o último dos líderes da luta e resistência contra a escravidão.
A data foi sancionada pela presidenta Dilma Roussef, em 2011.
O grande líder quilombola é referenciado no filme de Cacá Diegues em 1985, Quilombo, no nome da banda de Chico Science, Nação Zumbi, em 1994, com a denominação por lei, em 1999, do Aeroporto Internacional de Maceió - Zumbi dos Palmares, no disco de Gilberto Gil de 2010, Z: 300 Anos de Zumbi, e muitas outras menções nas artes reverenciam aquele que tornou-se símbolo de liberdade.
A luta se renova nestes tempos urbanos ameaçadores.
Na foto acima de Gonzalo Rivero, Estátua de Zumbi, na Praça da Sé, Salvador, de autoria da artista plástica Márcia Magno, inaugurada em 2008.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

fragmento da memória



Do lado fronteiriço do pai
meu avô joão
com um canivete esculpia palitos para os dentes
com lascas do cercado trazidas do curral
onde o boi mugia no final da tarde
a tarde que intendia o alpendre
o alpendre que estendia meu olhar
o meu olhar que entendia meu avô
e os fiapos de madeira pelo chão
e as réstias da tarde pelo vão
e os palitos no colo do avô joão.
Entre o velho e o menino:
os palitos,
a tarde
e o coração.
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Fragmento do meu livro ©Trem da memória, um dos próximos lançamentos da Editora Radiadora.
Prefácio de Valdi Ferreira Lima
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desenho ilustrativo para esta postagem: ©Fausto Nilo

domingo, 14 de novembro de 2021

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

o tempo de Manoel


Em 2008 a revista Caros Amigos, edição 117, publicou uma entrevista com Manoel de Barros. Foi uma das raríssimas vezes em que o poeta recebeu jornalistas em sua casa... Com sua timidez de passarinho e simplicidade pantaneira, Manoel preferia atender às perguntas por escrito.

Quando um dos jornalistas perguntou o que achava sobre a duração da vida, ele respondeu em versos criados naquele momento:
“O tempo só anda de ida. A gente nasce, cresce, envelhece e morre. Pra não morrer, é só amarrar o tempo no poste. Eis a ciência da poesia: amarrar o tempo no poste! ”
Há sete anos o tempo de Manoel soltou-se do poste.
Acima, desenho-poema do poeta.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

o velho e o mar

 

"Fui esquecido. O país é muito grande e eu não apareço na TV. Não gosto de TV, acho um parto".

O ator Joel Barcellos fez esse desabafo em uma entrevista ao jornal O Globo, em 2006.
Marcante em filmes emblemáticos do cinema brasileiro, como Os fuzis, de Ruy Guerra, A grande cidade, de Cacá Diegues, A falecida, de Leon Hirszman, entre os mais de quarenta em que trabalhou, o ator ficou conhecido do grande público pelo papel de Chico Belo, na segunda versão da novela Mulheres de Areia, em 1993. Tinha feito antes Estúpido Cupido e algumas minisséries. Não gostava mesmo de televisão. Era um ator essencialmente de cinema, e seu último grande papel foi em O homem nu, de Hugo Carvana, 2012. Desde então, morava em Rio das Ostras, na baixada litorânea do Rio de Janeiro.
No final da década de 60, Joel Barcellos, por suas posições contrárias ao regime militar, teve que se exiliar na Itália, e só voltou em 1974.
Interpretar o personagem Turíbio, criado por Guimarães Rosa no conto O duelo do livro Sagarana, e adaptado para o cinema no filme de Paulo Thiago, foi para o ator uma forma de enfrentar a escuridão de volta ao país no governo Geisel.
O aparentemente frágil, mas destemido Turíbio, enfrenta em um duelo simbólico o forte Cassiano, um caçador de cangaceiros, interpretado por Milton Moraes. Personagens típicos do sertão roseano em um Brasil num galope à beira-mar, enfrentando um dragão da maldade.
Figura simpática e presente em várias edições do Festival de Cinema de Brasília, Joel ganhou em 1968 o Candango de Melhor Ator pelo papel em Jardim de Guerra, de Neville d'Almeida.
Em 2012 Joel sentiu-se mal enquanto curtia um mergulho no mar, e logo noticiaram sua morte. Mas foi desmentido, e Joel continuou caminhando na praia nos finais de tarde.
Mas na madrugada do dia 10 de novembro de 2018 o ator mergulhou de verdade noutro mar. Tinha 81 anos. A causa da morte, consequência de dois AVCs.
Apesar de se dizer esquecido, Joel era muito querido onde morava. Sempre foi um astro no Rio das Ostras.

ano que vem, mês que foi


“E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusão.”

- Trecho do poema-imagem Pessoal intransferível, de Torquato Neto, escrito um ano antes de ele apagar a luz em 10 de novembro de 1972, um dia depois de completar 28 anos.
Turva-se a lágrima nordestina... Apenas a matéria vida era tão fina...
E na imagem-poema abaixo, Torquato na exposição A pureza é um mito, de Hélio Oiticica, em Londres, na Whitechapel Gallery, 1969, um ano depois do antológico Tropicália ou Panis et Circencis, disco que tem suas letras Geleia geral e Mamãe, coragem.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

a que será que se destina


foto Acervo família Torquato Neto

O meu nome é Torquato 

O do meu pai é HELI

O da minha mãe SALOMÉ

E o resto ainda vem por aí

Primeiro poema de Torquato Neto, escrito aos 9 anos de idade, em Teresina, 1953, mencionado no documentário Torquato Neto - Todas as horas do fim, de Eduardo Ades e Marcus Fernando, 2017.
Hoje, 9 de novembro, se acaso a sina do menino infeliz não se nos ilumina, ele faria 77 anos pessoais e intransferíveis.
Acima, Torquato Pereira de Araújo Neto posando em frente ao Teatro 4 de Setembro, Praça Pedro II, na capital piauiense.

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

cartas entre irmãos

 

Durante o período de 1873 a 1890 o pintor Vincent van Gogh escreveu quase 600 cartas para seu irmão mais novo, Theo van Gogh, um próspero comerciante de arte, com quem compartilhava suas instabilidades emocionais e dele recebia ajuda financeira.

Van Gogh guardou poucas das cartas que recebia, mas o irmão conservou todas. Graças a isso, logo após a morte de Theo, a viúva Johanna van Gogh-Bonger, professora e igualmente comerciante de arte, tratou de publicar algumas dessas correspondências e negociar os quadros do cunhado pela Europa. Ambos faleceram muito próximo, Vincent em 1890, Theo um ano depois.
A obra missivista é uma preciosidade para se conhecer o homem atormentado que foi o pintor. Van Gogh disserta sobre o processo de criação, o seu confronto com os costumes da sociedade burguesa, a sua consciência de se impor como artista e até mesmo – e a expressão substantiva aqui pode parecer contraditória - a lucidez em reconhecer sua loucura, sua crescente perplexidade e agonia diante da vida.
Até por volta de 1914 mais duas publicações foram lançadas, sempre com mais relevantes cartas. Além de Theo, van Gogh escreveu para sua irmã Wil, para o crítico de arte Albert Aurier e para vários pintores, entre eles, Paul Gauguin, com quem teve uma relação difícil, os dois, mesmo identificados no pós-impressionismo, discutiam muito sobre conceitos e formas de concepção artística, e suas teorias eram sempre incompatíveis.
As várias edições com as cartas, lançadas e relançadas ao longo desses anos, seguem as que foram traduzidas e organizadas na década de 30 pelo francês Georges Philippart.
As naturezas-mortas com garrafas de absinto, as florações de um pomar de ameixa, as cortesãs e as velhas camponesas, a solidão dos terraços dos cafés à noite, os velhos tristes no portão da eternidade, os comedores de batata, as cadeiras na sala e o pequeno quarto de dormir, os telhados sobre Haia, o pátio do hospital em Arles, os barcos pesqueiros e o velho moinho, a alma nos autorretratos, a angústia cinza de seus pinceis e a luz amarela de seus girassóis estão nessas cartas tanto quanto em seus quadros.

domingo, 7 de novembro de 2021

os instantes de Cecília


Foto década de 50, Acervo Solombra Brooks

Motivo, publicado em Viagem, de 1939, é o poema mais substancial em metalinguagem, significado e definição de Cecília Meireles: “Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está completa. / Não sou alegre nem sou triste: / sou poeta.”

A análise semântica que se faz de cada verso, “atravesso noites e dias / no vento”, “se desmorono ou se edifico, / se permaneço ou me desfaço”, traça um perfil elucidativo de quem tem o dom e o fado de lapidar a vida com a mais íntima manifestação da literatura: a poesia. O canto.
Cecília faleceu dois dias depois de completar 63 anos, em 9 de novembro de 1964, de câncer no estômago.
120 anos hoje de seu nascimento. Mais de um século de asa ritmada. Se fica ou passa, ela sabia que cantava. E a canção é tudo.

sábado, 6 de novembro de 2021

partes de mim


As mortes recentes do pianista Nelson Freire, do artista plástico Jaider Esbell, do novelista Gilberto Braga, da cantora Marília Mendonça... os mais de 609 mil por Covid-19...

“A morte de cada homem me diminui / pois sou parte da humanidade”, poeta inglês John Donne em sua obra Devoções em ocasiões emergentes, 1624.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

cores da morte


foto José Luis Alcaine / El Deseo S.A.

Quando Pedro Almodóvar lançou o filme Volver, em 2006, disse em entrevista a jornalistas em Madri, que escreveu o roteiro inspirado na naturalidade com que seus conterrâneos da pequena Castilla-La Mancha tratam a morte, cultivando muito a memória e passando a vida inteira cuidando de sepulturas.

O cineasta espanhol trata do assunto em cores nada sombrias. Muito pelo contrário. Tendo à frente do elenco suas fiéis atrizes Carmen Maura e Penélope Cruz, o filme conta a história de três gerações de mulheres que representam essa comunidade onde se fala muito, se oculta muito, se escuta muito, e, para ser uma comédia, chora-se muito. Só mesmo Almodóvar sabe pincelar bem essas cores diante das vestes do luto.
Carmem Maura, por exemplo, faz uma avó que volta do além para resolver uns assuntos que esquecera. Mortos e vivos convivem sem nenhum espanto. O fantástico e o real na mesma tela.
Almodóvar com humor inteligente transforma o cinema em entretenimento e reflexão.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

beat acelerado


 foto American Tablet Magazine

Marshall Berman, escritor e filósofo norte-americano, falecido em 2013, aos 72 anos, foi um dos grandes pensadores da modernidade.

Seu livro mais conhecido, Tudo que é sólido desmancha no ar: A aventura da modernidade, de 1982, lançado no Brasil em 86, é uma análise interessantíssima do que seja modernismo e do que se diz pós-moderno.
O título da obra é uma alusão ao pensamento exposto no Manifesto Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels, de 1848, que por sua vez remete a um verso de A Tempestade, de William Shakespeare, 1610, dito pela jovem Miranda, filha do Duque Próspero. À propósito, em outro momento na peça, a personagem exclama “Oh! Brave New World”, que viria a ser título do distópico livro de Aldoux Huxley, em 1932.
Na obra de Berman, os clássicos Goethe, Baudelaire, Dostoiévski, as vanguardas do século passado, todos passam pela dissecação crítica desse nova-iorquino que ia na contramão dos conceitos capitalistas e bélicos de seu país.
Modernismo nas ruas - Uma vida e tempos em ensaios, seu último livro, concluído um pouco antes de sua morte, lançado em 2017, como um remate expressa perfeitamente seu pensamento. Estão ali dezenas de ensaios sobre os agitados anos 60, escritos sobre rock e hip hop, apontamentos sobre grandes nomes da literatura, de Franz Kafka ao turco Orhan Pamuk, Nobel de 2006.
Um teórico urbano e seus contornos de cultura beatnik, Berman fez uma espécie de autobiografia na defesa lírica do modernismo.