
"Imaginação e realidade têm pouca coisa em comum."
Fala da personagem Anne, magnificamente interpretada por Emmanuelle Riva em "Amour", roteiro e direção de Michael Haneke.
Quem assistiu ao filme sabe a essência do que isso significa, o que
representa no seu contexto. Amor e morte. Assim como "Amour", o belo
filme do austríaco Haneke poderia intitular-se "Morte". Imaginação e
realidade. Poucas coisas em comum entre as duas. Diante da incômoda
certeza de uma, a vida é uma imaginação, abstrata, fluida, passageira,
um sopro, como dizia Oscar Niemeyer - ele, que burlou a dita cuja por
mais de um século.
O filme de Haneke mostra um casal de
octagenários no crespúsculo de suas vidas. A doença degenerativa de um
torna-se o enlace maior entre ambos, fortificado pelo amor.
E o
amor, creio, é incondicional por definição. Quando Anne diz ao marido,
em atuação marcante de Jean-Louis Trintignant, que ele deve estar
cansado de cuidar dela, do sofrimento infrigido pelas circunstâncias, o
marido rebate que não, claro. Mas a câmera de Haneke penetra o interior
do personagem, adentra sua alma, e a leitura é outra, pelo olhar, pelo
semblante, pela verdade - mais do que pela imaginação. Há o cansaço, mas
há o sentimento de predisposição sincero.
Esse é o grande valor de
um filme talentoso, de um grande Cinema. O que o olhar da câmera expõe, o
que supostamente não está enquadrado. O Cinema sugere o que é fato, o
que existe, o que pulsa.
Na abertura de "Amour", o espectador
vê a plateia de um teatro à espera do início de um concerto de piano.
Câmera fixa no auditório, do ponto de vista do palco. O pianista entra,
cumprimenta o público, aplausos de recepção, e começa a música. Rostos
atentos, ouvidos abertos. Não há um contraplano do músico chegando,
saudando os ouvintes, sentando-se no banquinho, teclando o piano. E nem
precisa. Nós vemos tudo isso através do olhar da plateia. O Cinema bem
feito permite essa conexão, essa cumplicidade. O Cinema é voyeur.
E assim é toda a narrativa do filme: minimalista em gestos, no desenho
de câmera, nos diálogos. E consequentemente grandioso em expressões,
significados, questionamentos humanos. Haneke trata o assunto com
poesia, com doçura, com o tato das retinas. O que é perverso, cru,
implacável, é a verdade do tema, não o tratamento. Podemos discordar do
final, da atitude extrema do marido, mas não se pode deixar de
compreender o ato. Uma coisa pode não justificar. Mas uma outra coisa
pode explicar.
E o que não se justifica, nem mesmo explicações
convencem, é Emmanuelle Riva não ganhar o Oscar de Melhor Atriz, e receber uma atrizinha inexpressiva de um filminho idiota.
Imaginação e realidade têm mesmo pouca coisa em comum. Nesse caso, nada.