sexta-feira, 26 de julho de 2024

o menino do sítio


Se quiser fazer uma xilogravura, pegue um pedaço de madeira mole, passe uma lixa pra fica bem lisinha. Depois faça um desenho a lápis, e com faquinha bem amoladinha recorte o desenho com muito, mas muito cuidado pra não se machucar. E aí vem o mais difícil, o mais perigoso: abaixar o relevo. Fazer os detalhes das roupas com bolinhas, com flores. Faça o rosto começando por duas bolinhas que são os olhos, depois um triângulo que é o nariz, e finalmente a boca, que é um coração.

Resumo que fiz da receita que mestre J. Borges escreveu em Como se faz uma xilografura, cordel de 8 sextilhas, por ocasião de sua exposição A Arte de J. Borges: Do Cordel à Xilogravura, no CCBB-Brasília, 2004.
Em palestras, oficinas, entrevistas, em conversas com ele no universo de seu cantinho de trabalho, o jeito de dizer tudo era tão encantador quanto a grandiosidade de sua arte. As poucas vezes que estive com ele – mas momentos intensos pela dimensão do ser humano e artista - só me lembrava de uma máxima de outro gênio da mesma constelação, Leonardo Da Vinci: “A simplicidade é o último grau da sofisticação”.
José Francisco Borges desde muito cedo tinha muita energia criativa para dar grandiosidade e sentido às coisas no J. Borges que assingelou para sempre. Fazia os desenhos para seus livros de cordéis porque, dizia, somente ele sabia traduzir o sentimento de seus versos ao talhar a madeira molinha. Humanizava os bichos em os seus quadros como forma de manter todos seres vivos com a mesma importância. Trazia o multicolorido de festas populares, do maracatu, dos reisados, em harmonia com o preto e branco das xilogravuras.
J. Borges é um dos artistas que Ariano Suassuna integrou na história do Movimento Armorial, que propunha a união das raízes nordestinas com a cultura erudita. Uma vez os dois se encontraram num evento em Brasília: “Até aqui, Borges?”, brincou Ariano. “A culpa é sua! Você me endeusa, o povo acredita, aí chamam você e me chamam também”, disse ele no fôlego de um abraço e modéstia.
Ele dizia que teve vida de matuto, criado no sítio em Bezerros, seu chão natal pernambucano. Estudou só dez meses, mas rapidamente aprendeu a ler, a escrever e fazer quatro peças de contas. Afirmava na tranquilidade de seu banquinho no atelier que foi a arte que lhe fez, lhe formou. A arte que lhe mostrou a vastidão além das margens do rio Ipojuga. Quando lembrava das dezenas de países que visitou, onde expôs e deu aulas, dizia, com jeito encabulado entre sertanejo e cidadão do mundo: “Não é que aquele menino do sítio aprendeu a ler e deu uma passada longa na vida?”
O mestre partiu hoje para outros sítios, aos 88 anos. Sua passada longa por aqui xilogravada em nossa memória e saudade.

Fotos: Fábio Sampaio (capa do catálogo), 2004, e acervo família J. Borges, 2022

quinta-feira, 25 de julho de 2024

domingo, 21 de julho de 2024

trem da memória


À venda pelo site www.radiadora.com.br e com o autor.
Em Fortaleza: Livraria Leitura (Shopping Iguatemi) e Livraria Arte E Ciência (av. Treze de Maio, 2400).
Em Brasília: Livreiro da 214 Norte (SCLN 214 - Bloco C - loja 64) e Sebo do Ismar (216 Norte, Feira da Ponta Norte).


 

sábado, 20 de julho de 2024

onde você ainda se reconhece?


Em 1999 o cantor e compositor Oswaldo Montenegro compôs a canção A lista, para a sua peça teatral homônima, apresentada no Teatro de Arena, Rio de Janeiro, e três anos depois gravada em seu disco, com o mesmo nome.

Mais do que uma música que expressa melancolia, um lamento, um rosário de um tempo passado,
a letra debulha os grãos dos dias,
olha pelo retrovisor sem perder o prumo adiante,
e, sobretudo,
disseca de forma serena, lúcida e sincera,
a amizade,
principalmente nestes tempos de fast-food dos afetos.

terça-feira, 16 de julho de 2024

mais um dia de saudade viva


Em 1997, os compositores irmãos piauienses radicados em Brasília Clodo, Climério e Clésio, gravaram para a TV Nacional um programa com suas músicas e clássicos de nosso cancioneiro, e para isso o projeto previa um outro cantor para dividir as escolhidas. Belchior estava na cidade e foi convidado.
Para a gravação à noite no palco do Teatro Dulcina, o compositor Clodo contou que foram encontrar Belchior pela manhã no hotel para combinarem o que cantariam. Sem um set list, o piauiense sugeriu O mundo é um moinho, “de um dos meus mestres, ao lado de Chico Buarque”, disse-me em conversa quando o entrevistei há dois anos para o documentário Pessoal do Ceará – Lado A Lado B.
Belchior alegrou-se e topou de imediato. E gravaram sem ensaio.
Um dado curioso que Clodo me disse é que a gravação foi somente para as câmeras, e de certa forma, fingiam que cantavam para uma plateia. Clodo riu com a lembrança, a concepção do show antecipava as lives do pandêmico 2020.
E uma curiosidade maior que ele me lembrou: os três que têm fortes ligações com o que se denominou Pessoal do Ceará, dividiram parcerias com Ednardo, Raimundo Fagner, Rodger Rogério, Fausto Nilo, Petrúcio Maia, Augusto Pontes, Vicente Lopes, Calé Alencar, menos com Belchior.
No vídeo abaixo, a interpretação de Clodo na composição de Cartola transpira um terno sentimento de pertencimento, pelo dizer de cada verso de poeta para a poeta, de melodia que escorre de mestre para discípulo. Há uma imensidão de beleza da música brasileira no cantar de Clodo.
Clodo Ferreira partiu hoje de manhã, aos 72 anos. Um dia vestido de saudade viva volta a incomodar.

terça-feira, 9 de julho de 2024

o trem chega a Quixadá


“Fortaleza seria logo ali
depois da bica do Ipu
passando o arco de Sobral
chegando nas bananeiras de Caucaia”
- Trecho do meu livro Trem da memória (Editora Radiadora, 2022)
Quando menino, eu viajava de trem de Cratéus para Fortaleza e pela janela media o tempo de chegada por essas três cidades dos versos.
Banhava meu olhar nas águas da cachoeira de Ipu, abençoava meu coração no Arco de Nossa Senhora de Fátima e pegava com o tato das retinas a fruta nos cachos que quase batiam no trem: estava perto de chegar e ver o mar.
Mas sempre viajei de ida e volta um pouco frustrado porque o comboio de madeira, fumaça e canção metálica café-com-pão-leite-não não passava por Quixadá, no sertão central distante do chão oeste de Crateús. Eu queria muito ver a Pedra da Galinha Choca, formação rochosa esculpida pelo tempo em formato da ave, ali pronta para bicar quem se aproximasse do seu ninho sobre os ovos de pedrinhas, assim eu imaginava.
Os versos sobre a cidade onde o trem não passava ficaram ocultos num vagão dentro de mim. Fui desembarcá-los muito tempo e estações depois quando passei a dar aula na Escola de Cinema do Sertão, projeto inovador da Secretaria de Cultura do município.
A Galinha estava lá, impávida na imensidão de seu quintal, monumental no seu silêncio secular de monólito. Ali, sólida e maternal cuidando e aquecendo os ovos postos para a continuidade de suas crias. Além, solene com sua crina e bico em riste para o céu, a inspirar um verso e o poeta seguir outra viagem.
Um exemplar do meu livro chegou hoje ao endereço de minha amiga Railane, uma de minhas alunas de roteiro na Escola. Chegou como se o trem pretérito desviasse os trilhos entre Ipu e Sobral e no afeto de sua leitura presente passasse por Quixadá.
Grato, Railane, pelo aceno na estação.


 

página de um livro bom

Foto: Celso Oliveira

Na foto acima: em alguma noite do passado, 1980, bar Quina Azul, na av. Carapinima, bairro Benfica, Fortaleza.
A partir da esquerda:
Eu, o poeta e professor Batista De Lima, a professora Socorro Xavier, o poeta Floriano Martins , o poeta e contista Airton Monte, o poeta e jornalista Rogaciano Leite Filho, o professor Magno Avelar e o artista gráfico Paulo Barbosa.
Hoje, 70 anos de nascimento de Rogaciano, que partiu aos 37 para outras quinas azuis.
Com mais 22 escritores (Adriano Espínola, Airton Monte, Antonio Rodrigues De Sousa, Batista de Lima, Carlos Emílio Correia Lima, Eugênio Leandro, Fernanda Teixeira, Floriano Martins, Geraldo Markan, Jackson Sampaio, Joyce Cavalcante, Lydia Teles, Marcio Catunda, Maryse Sales, Natalício Barroso, Nilto Maciel, Oswald Barroso, Paulo Barbosa, Paulo Véras, Rosemberg Cariry, Sílvio Barreira), fundamos o Grupo Siriará de Literatura em julho de 1979, com resistência sinalizada, manifesto assinado e revista lançada na 31ª Reunião Anual da SBPC, que aconteceu na capital cearense.
Rogaciano era o timoneiro de todos nós. Do alto do seu 1m80 içava as velas nos ventos da literatura, editando uma página semanal no jornal O Povo com nossa produção primeva de poemas, contos, crônicas, artigos de luxo de nossos corações entre o espanto e a esperança, entre a perplexidade e a utopia.
Rogaciano conduzia as reuniões às sextas-feiras na casa de um de nós daquela semana, onde líamos e discutíamos nossas criações. onde aplaudíamos nossos acertos, ouvíamos as críticas e acatávamos as correções. Saraus sem lacração, sem lustração de egos, sem livros ainda, mas com poesia.
Rogaciano depois conduzia quantos de nós cabíamos em seu Fiat 147 para as noites, mesas e brisa do Bar Estoril e outras esquinas de todas as cores.
Rogaciano conduzia e dizia com quantos versos se fazia um poema coletivo nesses encontros sob o céu que nos protegia, sobre o chão sagrado siriarense.
A saudade, essa delimitação do vazio que Olavo Bilac dizia que “é a presença dos ausentes”, cristaliza-se em memória mais terna e feliz nessa esquina do tempo.
Um brinde, Rogaciano! 

quarta-feira, 3 de julho de 2024

voz pra cantar corda de aço

Foto: Alex Meira / Clan do Cinema

- Vamos fazer uma foto trocando e tocando os instrumentos! – Falei para o guitarrista Cristiano Pinho após uma hora de entrevista para o documentário Pessoal do Ceará – Lado A Lado B.

- Eita, Venancio, é mais fácil você pegar a pegada das cordas de aço do que eu dirigir um filme. – Disse, coçando um sorriso tímido sob a barba.
- Vamos tentar, Cris! Você me ensina a fazer renda com a guitarra e eu lhe ensino a namorar uma câmera.
Ele abriu um riso maior com a brincadeira, ergueu a cabeça, subiu um pouco o boné com indicador na aba e decidiu: “Bora!”.
Cristiano silenciou sua guitarra hoje, aos 59 anos, em plena maturidade de sua juventude e uma história na cena musical cearense, na música brasileira. Tocou com gerações e girassois, de Belchior, Fagner, Ednardo, Amelinha, Rodger Rogério, Téti, Fausto Nilo, Mona Gadelha, Lucio Ricardo a Kátia Freitas, Mimi Rocha, Ricardo Barcelar, Renegados, Aparecida Silvino, Herlon Robson Braz, Fernando Catatau, Felipe Cazaux, Vitoriano... Gravou dois belos discos, Pessoa, em 1997, e Cortejo, 2010.
Há uns dois anos nos encontramos no aeroporto em Fortaleza, ele desembarcando, eu indo a Brasília. “Cadê o filme?”, perguntou, no laço de um abraço. Expliquei os motivos da demora, as dificuldades de finalização, a extensa negociação para a liberação de direitos autorais de músicas e imagens.
O filme sairá nesse segundo semestre, Cristiano. Você tocando seu instrumento, eu lhe reverenciando com o meu.
* O título da postagem é um verso da canção Corda de aço, de Fagner e Clodo Ferreira, gravada no disco Raimundo Fagner, de 1976. Na faixa, a guitarra de Robertinho de Recife, que Cris tanto admirava.
Foto: Alex Meira / Clan do Cinema