terça-feira, 30 de abril de 2024

o anel que tu me deste

Foto: Acervo Ateliê Carlos Bracher

“Em alguns minutos de conversa, que precederam a pintura, Belchior, ex-seminarista, deixou Bracher encantado com sua vasta cultura: recitava trechos inteiros de ‘A Divina Comédia’, de Dante Alighieri.
Sentaram-se frente a frente, no atelier. Como um touro que mira o toureiro, ou a esfinge que diz ‘ – decifra-me ou te devoro’.
Belchior sentiu o peso de ser desnudado naquele momento.
Olhou ao redor e bateu seus olhos em mim: uma menina jovem e acostumada aos embates entre modelos e criador no velho atelier de meu pai.
Tomou-me a mão, com suas mãos enormes e quentes. Deslizou por entre os pelos um grande anel, com pedra avermelhada e grossa armação em prata.
Pediu que eu o mantivesse comigo, durante o retrato. E eu lá permaneci, vendo aquele rosto se transfigurar para a tela, naquela osmose materializada pela talentosa mão de meu pai.
Ao término, como sempre, Belchior não sorriu, apenas arqueou a ponta do bigode, apertando os olhos, num claro gesto de surpresa e aprovação ao que acabara de presenciar.
Eu ainda torci para que ele se esquecesse do anel, e comigo deixasse aquele amuleto de sorte.
Mas, ao se despedir, o rapaz latino americano me pediu de volta seu guia.”

- Crônica da jornalista Blima Bracher em seu blog, no dia em que soube da morte de Belchior, 30 de abril de 2017.
O cantor esteve no atelier do pintor mineiro Carlos Bracher, em Ouro Preto, em 1979. Estava na cidade participando do Festival de Inverno, e aproveitou para visitar o amigo.
O quadro de Bracher integrou a exposição Retratos: Belchior visto por grandes nomes e por ele mesmo, no Centro Cultural Oboé, em Fortaleza, 2002.
Sete anos que essa lembrança é o quadro que dói mais.

domingo, 21 de abril de 2024

migrante



IV

no começo da terra vermelha e cidade
meu pai passou por aqui
enquanto juscelino passava em seu jeep.
adubou concreto
elevou colunas
estendeu asas:
o sonho avesso de pau a pique.
de vastidão por imensidão
de cerrado por sertão
entorpecido de poeira e saudade
um dia subiu no pau de arara que voltava
sob o olhar franzido de juscelino.
preferiu
o abraço de minha mãe
o leite ralo das cabras
e a esperança de sol a pino.
- Poema do meu livro em preparação A paisagem e a distância - escritos sobre Brasília.
A cidade hoje faz 64 anos. Cada operário em construção, tijolo com tijolo num desenho lógico, também faz aniversário.
Foto: "Candangos", 1957, de Mário Fontenelle.

 

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Mários, pássaros e tempestade

Fotos: Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP

Em 1943 o poeta Mário da Silva Brito, estudioso do modernismo na literatura brasileira, foi à residência de Mário de Andrade, força motriz por trás da Semana de Arte Moderna de 1922, entrevistá-lo para o jornal Diário de São Paulo.

“Decididamente cometi uma imprudência indo procurar Mário de Andrade para uma entrevista. É que ele, há já algum tempo, anda enfermo, necessitando de repouso e tranquilidade”, escreveu na abertura da matéria. Mas, uma vez lá, iniciou a entrevista e fez de tudo para ser rápido. Com Mário de Andrade nada era pouca coisa. No ambiente acolhedor da sua sala, rodeados por quadros de Portinari, de Segall e de Tarsila do Amaral, o autor de Macunaíma foi intenso.
Quando se levantou para agradecer, Silva Brito ouviu as batidas do relógio já tarde da noite. Saiu pensativo pelas ruas ainda seguras da capital paulista, totalmente embevecido com as horas de conversa com seu mestre.
“A entrevista foi desordenada. Cheia de interrupções, de saltos. De pulos de um assunto pra outro. Um mundo de conhecimento”, disse na primeira parte do texto. ”Muitas coisas para ver e aprender”, confessou o poeta. Mesmo “desordenada”, a conversa mostrou a Silva Brito um intelectual extremamente organizado, que trabalhava com método. Mário de Andrade sabia de tudo, conhecia tudo, pesquisava tudo.
“Aqui estão as fichas sobre Catimbó. Estas são de assuntos musicais. Aqui pintura. Crítica. Folclore...”, e foi apresentando as pastas ao seu xará, de olhos arregalados. Silva Brito folheou o fichário sobre zoofonia. Soube naquele dia que se trata do estudo sobre as vozes dos pássaros. Ouviu do anfitrião a explicação detalhada dos nomes onomatopaicos Bem-te-vi, Tico-tico...
Mário de Andrade guardou o fichário aviário dizendo: “São estudos fascinantes. Sobre qualquer aspecto se pode estudar. Até do sexual.”. E saltou para outro fichário.
O encontro, onde se falou de pássaros, literatura e inesperados, está reproduzido no livro “Entrevistas e depoimentos: Mário de Andrade”, organizado por Telê Porto Ancona Lopez, da TAQ Editora Ltda, 1983.
Relendo recentemente o exemplar, depois de uma conversa com o amigo e leitor compulsivo Galileu Viana, um trecho que à época sublinhei, me lembrou a ligação que fiz entre os Mários. O jovem poeta pergunta:
- Tem feito alguma poesia, Mário?
- Poesia não se faz. Ela vem.
Mário de Silva Brito, falecido em 2008, aos 91 anos, na sua excelência de escrita poética, considero um exímio em poemas curtos. O que se lê não apenas do dístico em diante, mas apenas numa linha, é arrebatador. E a resposta de Mário de Andrade me remeteu a um poema que está no livro que Silva Brito lançou em 1978, Suíte em dor maior:
Uni-verso 2
A tempestade é em mim.
Nos grandes poetas as tempestades vêm sempre porque neles estão. 

segunda-feira, 15 de abril de 2024

o inteiro repartido


"Sejamos Narciso de nossa cultura: reconhecer que também somos Machado, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Maria Firmina dos Reis, Conceição Evaristo, Luiz Gama, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Esmeralda Ribeiro, Patativa do Assaré, Cecilia Meireles, Sergio Vaz, Dandara, Ailton Krenak, Lima Barreto, Bispo do Rosário, Chiquinha Gonzaga, Abdias do Nascimento, Glauber Rocha, Ruth de Souza, Jorge Amado, Lélia Gonzalez, Dom Salvador, Gonzagão, Sônia Guajajara, Tom Jobim, Marielles, Chico Buarque, Caymmi, Gilberto Gil, Manuel Bandeira, Milton Santos, Carolina de Jesus, Caetano, Elis Regina, Joãos, Marias, Terezinhas e Zulmiras, e tantas outras subjetividades que nos constituem. Um Brasil de Zumbi, Guaranis e Portugueses.
Nosso inteiro é repartido, essa integridade multifacetada do brasileiro precisa ser revelada, as personalidades precisam ser nomeadas, isso só é possível por meio da revisão da nossa história, buscando o princípio da verdade de quem somos e onde queremos chegar."
- Tiago Souza da Cruz, professor de Língua Portuguesa e Literatura, mestre em Literatura e Vida Social na Universidade Estadual Paulista (Unesp), no artigo "Machado e negritude", publicado no site Deriva, 10/11/2020.
Acima, Machado de Assis, 1904, foto de autor desconhecido, acervo do Arquivo Nacional. 

terça-feira, 2 de abril de 2024

segunda-feira, 1 de abril de 2024

um dia vestido de saudade viva

Em 20 de junho de 2015, depois do show de Clodo Ferreira, no Clube do Choro, em Brasília, conheci Lia Tavares, jornalista e produtora. Filha do compositor Clésio Ferreira, disse-lhe que tinha feito fotos com Clodo e Climério, e queria uma com ela, já que seu pai não estava mais por aqui (falecido em 2010). A empatia entre nós foi imediata. Parecíamos amigos de infância. De lá para cá, o tempo se estendeu no afeto dessa amizade.
Naquela noite conversamos sobre o projeto do documentário Pessoal do Ceará – Lado A Lado B, e que os piauienses-brasilienses irmãos Ferreira, pela forte ligação com a turma da música cearense, estavam escalados para o filme, em entrevistas e imagens. Lia liberou o que estava ao seu alcance sobre a obra do pai. Clesio e Clodo são os autores de um dos maiores sucessos de Raimundo Fagner, Revelação, gravado em 1978, no disco Eu canto.
Procuramos um local para fazer a foto. Encontramos um cantinho tendo ao fundo uma colagem de cartazes do Clube, e escolhemos um ângulo onde lia-se (olha a conjugação do verbo em seu nome!): “Para sempre Dominguinhos”. E ela me disse com um arco imenso de sorriso: “Agora somos amigos para sempre, Nirton”.
Lia partiu na madrugada de hoje, aos 44 anos. Meu coração agora é um pranto para sempre, querida amiga.