domingo, 21 de agosto de 2022

carta a um jovem poeta

 

Caro Mateus Lira, começo a manhã deste domingo terminando de ler suas Memórias agrestes, aqui de Brasília, longe de seu Sobral por onde eu passava o arco a caminho de meu Crateús. Termino de ler surpreso pela densidade memorialista de um jovem poeta. Poeta antigo, antigo no sentido mais sedimentado de tempo, de um olhar sensível que nele mergulha, no que “dar origem ao alicerce / profundo como o embrião”. O jovem das bandas do rio Acaraú e sua “lembrança do sertão” quando alguma coisa acontece em seu coração migrante e “os pés atritam com a rua Lavradio” no centro do velho Rio de Janeiro.

Em Poema torto você encontra na mesma esquina dessa perplexidade Pessoa e Ferreira Gullar na reverência da construção dos versos, na referência de um fim de tarde quando resolveu se arriscar na procura, quando “fecham-se as portas da velha livraria” no mesmo chão carioca de uma sexta-feira em seu calendário de transeunte. Que belo saber em suas páginas que “é fim de tarde / e meu coração é tudo que tenho”, como Drummond que evoca olhando os lírios do mar em Copacabana.
Sua saudade é mais memória do que apenas ontem. É o tempo de todos os tempos que a íris de seus vinte e poucos anos captou com sua inquietação de poeta. Memória que também se constrói “pela vida perdida no dia anterior”, o mesmo dia que o trouxe a esse seu bem-vindo primeiro livro.
O texto de Djabo Grande na orelha é a apresentação perfeita de um literato migrante da juventude de si e do sertão – o poeta que está só em suas memórias e nesse sertão que é dentro, como bem aponta Leo Mackellene no início do prefácio igualmente apurado, alertando – necessariamente! – que nasce um poeta, e quando um poeta nasce, devemos prestar atenção.
Presto-lhe toda a atenção, Mateus, porque me encontro em você quando também tive 25 anos de sonho e de sangue e escrevi meu roteiro dos pássaros na América do Sul. Compartilho a cumplicidade do “delito” de ser poeta nessa terra de doutores, e como você tão apropriadamente diz, “guardei na memória / o medo / mastigando o corpo”.
Leio mais uma vez os versos sublinhados na ponta do lápis. Ainda há manhãs neste domingo.

Nenhum comentário: