sexta-feira, 24 de novembro de 2023

poetas do desterro


Em outubro de 2005, Belchior fez uma excursão por dez cidades catarinenses com o show Belchior – Uma Turnê Catarina. A apresentação fazia parte do projeto Cruz e Sousa – Identidade Cultural Catarinense, promovido pela Agência Luso-Brasil Cultural com apoio do governo estadual. Idealizado pelo cantor e pelo professor universitário potiguar José Gomes Neto, radicado em Florianópolis há 50 anos, o show apresentava sonetos do poeta simbolista que o cantor musicou, gravou em 1993, e continua inédito.
Amigos por muito tempo, Gomes e Belchior tiveram longos papos e som dentro das noites. Além do CD Belchior canta Cruz e Sousa, com oito faixas, elaboraram outro projeto, um livro com as letras de todo o repertório do compositor. José Gomes Neto organizou o vasto material, mas não conseguiu publicar. Só foi possível em 2018, um ano após a morte do cantor. Editado em tiragem limitada pela VitelliPublicher, Cancioneiro Belchior é uma preciosidade de 280 páginas do letrista latino-americano, sem dinheiro no banco, mas com amigos como professor Gomes e o cantor Jorge Mello, seu parceiro, que escreveu o prefácio.
Em conversa recente com José Gomes, disse-me que o arquivo original do CD está na França com um maestro que se interessou pelo projeto, financiou o trabalho de eliminação de instrumentos eletrônicos e a gravação de novos arranjos em moldes camerísticos. Novamente o impasse: para finalização, edição e prensagem do disco, falta patrocínio.
Em 30 de abril de 2017, quando o anjo do Senhor, de quem nos fala o Livro Santo, desceu do céu e Belchior fez a sua última viagem, Santa Cruz do Sul-Sobral-Fortaleza, lembrei-me de Cruz e Sousa. Esse traslado pelos céus em nuvens cinzas de saudade, me remeteu à derradeira travessia do poeta simbolista. Nascido em Nossa Senhora do Desterro, hoje a capital Florianópolis, Cruz e Sousa morou um tempo no Rio de Janeiro, e casado, mudou-se para Curral Novo, em Minas Gerais, onde faleceu aos 36 anos, de tuberculose. Seu corpo foi de trem para o Rio, num vagão destinado a transporte de cavalos. A imagem que me vem é o cinza da fumaça férrea desenhando os últimos versos onde “Cantam as aves do céu da intimidade”, como disse em O horror dos vivos, do livro póstumo Últimos sonetos, 1905.
Olhando para Belchior deitado como nunca no hall do Teatro Dragão do Mar, naquele domingo cinzento por dentro, outro verso de Cruz e Sousa passou pelo meu silêncio marejado: “Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro” na madrugada da cidade gaúcha, do poema Vida obscura, um dos que ele musicou.
Hoje, 162 anos de nascimento do Cisne Negro da poesia brasileira.
Acima, flyer da divulgação de captação de recursos para o projeto do CD, lançado em 2021.

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