quinta-feira, 30 de março de 2023

perfume da memória


Trem da memória, de Nirton Venancio, é poesia de elevada qualidade, que emana um perfume do melhor memorialismo de Drummond, sem abrir mão de um estilo pessoal já inconfundível.

O curioso, e que confere uma força lírica extraordinária, é que, muito embora vazado numa linguagem poética de corte clássico, as imagens não se derramam com sentimentalismos afetados. Há uma precisão, um rigor na composição do texto que lembra João Cabral, ecoa Drummond e reedita a leveza poética de Manuel Bandeira. Só um grande poeta o faria num mesmo poema, e Nirton Venancio o faz com maestria! Sem deixar de ser original, frise-se!
Por último, impressiona o domínio da carpintaria poemática, a estruturação do texto enquanto 'coisa produzida', enquanto forma, enquanto matéria artística! Parabéns, imenso poeta!
- Alder Teixeira, professor de Estética, História da Arte, Literatura Dramática e Comunicação e Linguagem, UECE e IFCE.
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Trem da memória, Editora Radiadora, 2022
Prefácio: Valdi Ferreira Lima
Posfácio: Mailson Furtado
O livro concorre ao Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa 2023 e ao IX Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, Faro, Portugal.
À venda com o autor e pelo site www.radiadora.com.br

 

sábado, 25 de março de 2023

a libertadora


Foto: Joel Maia, Ilha de Paquetá, RJ, 1971


Em 1971, Leila Diniz exibia sua gravidez nas areias escaldantes das praias do Rio de Janeiro. Banhava Janaína, bendito fruto de seu ventre com o cineasta Ruy Guerra.
Com seu barrigão, sua beleza irreverente, sua personalidade ousada, a atriz quebrou tabus e desafiou uma sociedade machista comandada por uma ditadura militar.
O poeta Carlos Drummond de Andrade, em crônica publicada no Jornal do Brasil sobre sua morte em 14 de junho de 1972, bem definiu a musa dizendo que "sem discurso nem requerimento, Leila Diniz soltou as mulheres de vinte anos presas ao tronco de uma especial escravidão."
E Rita Lee confirmou que desde então "toda mulher é meio Leila Diniz” na canção Todas as mulheres do mundo, em disco de 1993.
Hoje 78 anos de nascimento de Leila para sempre Diniz.

quarta-feira, 22 de março de 2023

low profile


Foto Elzbieta Lempp, Cracóvia, 2000

"A verdade é que não se sabe muito sobre a sua vida privada, que ela sempre tentou preservar. Não se coloca no papel de celebridade literária, dessas que aparecem na televisão e opinam sobre os mais diversos assuntos. Também não gosta de dar entrevistas. Uma vez declarou: 'Minha vida está nos meus versos.'"
- Regina Przybycien, tradutora, no prefácio do livro Wislawa Szymborska [poemas], Companhia das Letras, 2011.
A polonesa, falecida em 2012 aos 88 anos, foi Prêmio Nobel de Literatura 1996.
Um estilo notável e raro em uma grande poeta. Tão distante destes tempos de redes sociais, onde ostentam-se muitos "poetas" e suas vaidades e uma poesia de versos vazios.

terça-feira, 21 de março de 2023

procura da poesia


Durante a 30ª Conferência Geral da UNESCO, em Paris, novembro de 1999, foram criadas as datas 21 de março como Dia Mundial da Poesia e 20 de outubro como Dia do Poeta. No Brasil, em lei sancionada pela presidenta Dilma Rousseff em 2015, é celebrado o Dia Nacional da Poesia em 31 de outubro, homenagem ao nascimento de Carlos Drummond de Andrade.
E por lembrar do nosso poeta maior, em Procura da poesia (trechos acima), Drummond questiona o eixo fundamental do poeta sobre a criação. A narrativa em metalinguagem, aparentemente “professoral”, é uma reflexão sobre o fazer-poético, onde o eu lírico não pode se precipitar na pessoalidade, no peremptório conduzido pela ingenuidade dos sentimentos. A matéria-prima é a palavra, e esta, não lapidada, em “estado de dicionário”, corre o risco de um sentido apenas denotativo, frio, sem graça e encanto - efêmero.
Publicado em 1945 em A rosa do povo, é um dos mais belos poemas da língua portuguesa, significativo na obra do autor e do modernismo brasileiro, por sua essência de cartilha poética, e, sobretudo, confessional, ao contrário de imperativo como se possa deduzir.
Um poema precisa de um tempo para moldar um corpo, o espaço necessário para o abstrato recém-chegado nele se estruturar e permanecer vivo.
Imagino a perplexidade de Drummond vendo hoje o que se comete como poesia nas redes sociais.


 

segunda-feira, 20 de março de 2023

conselho de amigo



"Aproveita esse bando de saudades que se agitam em teu espírito".
- Esse foi o conselho que Graciliano Ramos deu a um amigo que desabafa suas dores e quer escrever poemas.
O trecho está no livro póstumo Cartas, publicado em 1980 pela Editora Record. Nele estão cartas enviadas pelo escritor alagoano a amigos e familiares, no período de 1910 a 1952.
A leitura proporciona uma relação íntima entre o autor e o leitor, numa curiosa simetria entre o missivista e seus destinatários.
A respeito do amigo poeta que tem um "bando de saudades" no peito, Graciliano reforça dizendo: "espero que me mandes em breve uma chusma de sonetos"... Deve ter mandado. Saudade dá muita poesia.
Hoje, 70 anos de saudade do velho Graça.

Foto Kurt Klagsbrunn / Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP
O escritor em sua casa, Rio de Janeiro, 1949.

 

domingo, 19 de março de 2023

carpinteiro do universo


Hoje é feriado em minha querida Fortaleza. Dia de São José, dos Carpinteiros, dos Marceneiros, padroeiro de todo o terral Ceará, dos sertões, vales e serras. E na crença de todos nós sob esse sol inclemente e histórico, chovendo hoje é a anunciação de um bom inverno. Rogai por nós, meu santo, derramai uma chuva de bênçãos sobre esse povo que antanho de joelhos no Quinze de Rachel rezou um bocado, pedindo pro sol se esconder um tiquinho.
Conclame uma legião com São Francisco de Canindé e Padre Cícero de Juazeiro do Norte, convoque Sua Nossa Senhora de Assunção, padroeira de nossa cidade, chame Padre Mororó, revolucionário que liderou o repúdio de Quixeramobim ao autoritarismo do D. Pedro I, e Bárbara de Alencar, nossa heroína da Confederação do Equador, façam uma frente de querubins e serafins e intercedam junto ao Seu rebento sagrado por nossa saúde, e benzam a sabedoria da ciência na cabeça dos homens, trabalho e comida, diversão e arte, abraço e afeto no coração de todos.
E que o tempo bonito pra chover, chova de mansinho.
Pintura São José, o Carpinteiro, de Georges de La Tour, 1640, atualmente no Museu do Louvre. 

quinta-feira, 16 de março de 2023

viagem, vida e poesia sem fim


Ao adentrar no vagão e tomar assento numa poltrona colada à janela, descobri de imediato que a viagem seria mais que uma aventura. Trem da memória (Editora Radiadora, 95 páginas, 2022, impressão e acabamento Expressão Gráfica, Fortaleza-CE), do cineasta, roteirista, poeta e professor de literatura e cinema Nirton Venancio, é um desfile de experiências sensitivas carregadas de recordações, reminiscências, lembranças e memórias abissais e emocionantes.

O dúplice Poesia-Memória transborda de forma pungente, fazendo da janela desse trem alado ora telinha de TV preto e branco, ora telona cinemascope colorida. Às vezes, um pano circense, outras um oitão de igrejas interioranas. Até mesmo a janela se faz de binóculo a perscrutar minudências existenciais e poéticas de expressão maiúscula no enquadramento da janela, que se transubstancia em monóculos coloridos cheios de amostras do cotidiano, das religiosidades, de laços familiares, de saudades, de desvãos, de baú de ossos... De instante a instante, somos sacolejados num "trempoema" pleno de relicários, confessionários, sacos de confetes e serpentinas, testamentos, inventários e diários íntimos do outrora.
Há na viagem intertextualidades e dialogismos que põem nos trilhos cinema e literatura, cotidiano e memória, passado, presente e futuro. Há reencontros de personagens reais e ficcionais em roteiros pactuados da história de vida real e de imaginários variados, coloridos, pretos e brancos, multifacetados, polissêmicos, cujos diálogos se desdobram e recobram existencialmente uma cosmovisão ao mesmo tempo impressionista e expressionista de inundar olhos e corações.
Ao final, não da viagem - porque essa é sem fim ante a estação passado-presente-futuro -, há um lindo inventário. Mesclado de pessoas, lugares, sabores, imaginários individuais e coletivos, experiências, sensações, emoções, efemérides, eventos, acontecimentos e uma plêiade de existências concretas e ideais que nos impulsionam a algo agônico ou memorial ante o trem que não descarrilha, mas nos cutuca encantadoramente. Nirton Venancio não é apenas o maquinista; é o passageiro que nos faz sonhar acordados. Ora em aconchego com as metáforas, ora em acalanto com a poiesis.
- Ronaldo Salgado, jornalista, professor da Universidade Federal do Ceará, autor de A crônica reporteira de João do Rio, dissertação de mestrado publicada em livro pela Edições Leo em 2006.
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Mais do que analisar o livro, você auscultou o poeta, caro Ronaldo. Tocou em pontos que estão no mais íntimo espaço de minha memória.
E parafraseando Caio Fernando Abreu, no meu coração tão cheio de marcas e poços, de trens e lugares, seu olhar afetuoso e preciso ocupa um dos lugares mais bonitos nessa viagem.
Imensamente grato.


 

terça-feira, 14 de março de 2023

sábado, 11 de março de 2023

elegância da simplicidade


Foto: Acervo Família Albano

Leonardo Da Vinci dizia que "a simplicidade é o último grau de sofisticação". Uma máxima aplicável ao fotógrafo cearense Mauricio Albano.
Uma das pessoas da mais extensa doçura, “que traduzem a ternura mais funda e mais cotidiana”, como precisava Manuel Bandeira em Neologismo. Sua filosofia de viver as coisas simples, de valorizar as coisas simples, de viver simplesmente viver, era cativante para quem estivesse ao seu lado. E isso, claro, refletiu em seu trabalho de cinco décadas fotografando a vida. Foi still em dois filmes que dirigi, Um cotidiano perdido no tempo, minha estreia em 1988, e Walking on water, 1990, para a TV inglesa HouseTop. Honrado com sua presença na equipe, reverenciava-me e dizia-lhe que eu tinha começado abençoado no cinema.
Elegância da alma, fineza da alma, distinção da alma: a sofisticação que Da Vinci menciona.
E de maneira simples, em sua casa, que ele mesmo construiu próxima às dunas de Sabiaguaba, em Fortaleza, Mauricio se foi na manhã de 11 de março de 2015. Tinha 69 anos e a imensidão do mundo em seu coração, que não resistiu a um infarto.

quinta-feira, 9 de março de 2023

Armadura



Poema Armadura, do livro Poesia provisória.
Pena de Ouro é um concurso para contos e poemas, interagindo com autores de toda a lusofonia.
Os textos finalistas são avaliados por jurados do Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe.
 

quarta-feira, 8 de março de 2023

8 de março


Foto: Arquivo Nacional

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.
A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede.

- A noite não adormece nos olhos das mulheres, de Conceição Evaristo, escrito em 2008, publicado no livro Poemas da recordação e outros movimentos, Editora Malê, 2017.
Conceição escreveu em memória de Maria Beatriz Nascimento (foto), nascida em Sergipe, historiadora, professora, poeta e ativista pelos direitos humanos de negros e mulheres, assassinada em 1995, aos 52 anos, pelo marido de uma amiga, a quem aconselhou a largá-lo após várias reclamações de violência doméstica. Preso e condenado a 17 anos de prisão, disse que a ativista interferira em sua vida privada.
A noite nunca adormecerá nos olhos de Beatrizes, Marielles, Dandaras e tantas brasileiras... Conceição Evaristo em vigília atenta vigia a nossa memória.

terça-feira, 7 de março de 2023

eu viajei de trem


Quando li esse livro percebi que já fiz várias viagens nesse trem. Memórias quase esquecidas, quase apagadas e que através das emoções despertadas na leitura se tornaram vivas novamente. Lindo!!!

- Maurício Rolo, fotógrafo (Brasília)

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Trem da memória, Editora Radiadora, 2022
Prefácio: Valdi Ferreira Lima
Posfácio: Mailson Furtado
À venda pelo site https://www.radiadora.com.br/ e com o autor.

domingo, 5 de março de 2023

na gaveta da memória


1989, 12º Festival de Cinema e Vídeo do Maranhão. Um cotidiano perdido no tempo, meu primeiro filme em 35mm. Troféu Guarnicê de melhor curta-metragem e menção honrosa da Organização Católica Internacional de Cinema.

De uma foto folheada na lembrança vespertina deste domingo salta aos olhos um encontro de amigos comemorando. Do álbum analógico 10x15 à digitalização, da gaveta ao cartão de memória, o afeto que se encerra em nosso peito juvenil de loucos por cinema: o produtor Almiro Santos, a pesquisadora e restauradora Patricia de Filippi, este estreante, os cineastas José Joffily e Murilo Santos.
Fotografar é só o começo. O congelamento do clique é o início da memória. A fotografia tem esse poder de eternidade: ela atravessa a rua e o tempo.
Foto: uma Canon AE-1 de um de nós no automático.

sábado, 4 de março de 2023

as notas e os traços de cada dia


Fotos: Acervo Sueli Costa e Silvio Tanaka

"Por mais que busquemos aceitar a morte, ela nos chega sempre como algo de imprevisto e terrível, talvez devido seu caráter definitivo: a vida é permanente transição, interrompida por estes sobressaltos bruscos de morte".
- Trecho de uma carta do educador Anísio Teixeira enviada em janeiro de 1971 ao amigo Fernando de Azevedo, ensaísta e sociólogo, em Belo Horizonte.
Lembrei-me dessas palavras ao ler a notícia das mortes da compositora Sueli Costa e do cartunista Paulo Caruso nesta manhã de sábado.
“A Indesejada das gentes” que Bandeira definia em Consoada e anoitece para sempre nossos eus nos outros, nos faz desejar uma pausa, como a frase inicial de As intermitências da morte, de Saramago: "No dia seguinte ninguém morreu”, um ponto de partida para a divagação sobre a vida e o sentido, ou a falta dele, da nossa existência.
Que as notas musicais de Sueli e os traços de Caruso aliviem os sobressaltos bruscos e nos preencham de sentido a permanente transição de cada dia. 

sexta-feira, 3 de março de 2023

incompletudes da memória


 Ler leva tempo, mesmo poesias, são várias e é uma só, nós sabemos. O que vai fundo agora, pode mudar amanhã, depois, pode ser outra a preferida, uma mais curta que condensa tudo, ou a mais longa que nos pega exatamente porque não leva a nada ou leva a lugares nunca antes visitados, e vai tecendo a si própria sem começo nem fim.

É misterioso ler poesia, um mistério do leitor consigo mesmo. O livro pode ficar dias no sofá, na poltrona, largado ao lado de outros, na mesa de trabalho, no vão da pequena biblioteca, você passa, vê e não dá bola, “agora não, depois”. E os poemas ali, fiéis, vão saber o que fizeram ou ainda farão com você, leitor.
Tudo isso só para dizer agora que:
“O que escrevo são incompletudes” me pegou pelo pé de um jeito que estou girando até agora.
- Ieda Estergilda Abreu, poeta e jornalista (São Paulo), conceituando a relação leitor-poesia, citando um verso do meu livro Trem da memória (Editora Radiadora, 2022).
Conceituando, citando, girando: o gerúndio é sempre movimento.
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O livro está à venda pelo site www.radiadiora.com.br e com o autor.


quarta-feira, 1 de março de 2023

de volta ao lar

Foto Acervo Projeto Leonilson

“Agora estamos em casa. Aqui Leonilson passou a sua infância, parte da sua juventude e os últimos dias de sua vida. A obra retornou a sua casa e estamos todos felizes.”
- Ana Lenice Silva, irmã do pintor, desenhista e escultor Leonilson, nascido em Fortaleza, sobre a inauguração do espaço inaugurado em 2018 para abrigar todo o acervo do artista, falecido em 1993, aos 36 anos.
Diretora do Projeto Leonilson, que preserva e divulga a obra do irmão, o endereço a que ela se refere fica na rua Major Maragliano, 94, Vila Mariana, na capital paulista, cidade para onde Leonilson se mudou em 1961, com a família. Depois de dez anos instalado na rua França Pinto, no mesmo bairro, o Projeto ocupa todos os cômodos da casa, como a alma que se veste de todo o corpo que é seu para o abraço de todos.
São mais de 1000 obras de pinturas, bordados, desenhos, instalações, figurinos, cenários teatrais, além de objetos pessoais, como máquinas fotográficas, brinquedos, mapas, materiais de trabalho, uma coleção de fitas cassetes e diários, organicamente expostos no térreo, onde o artista recebia as visitas, e no piso superior, onde está sua vasta biblioteca.
A arte de Leonilson, ricamente em diversas linguagens plásticas, expressa com beleza a esperança, reflete os dramas, as angústias do homem contemporâneo, principalmente nos últimos anos de sua vida, quando descobriu ser soropositivo e usou sua dor como matéria prima para suas criações, numa dimensão alegórica que somente um grande ser humano sabe utilizar, e assim eternizar-se na história e no coração de quem lhe quer bem.
Leonilson faria hoje 66 anos, “especialmente feliz” em sua casa, como disse a irmã.