“Trogloditas, traficantes, neonazistas, farsantes: barbárie, devastação. / O rinoceronte é mais decente do que essa gente demente do Ocidente tão cristão”.
- Belchior em Bahiuno, faixa do disco homônimo de 1993, musicada por Francisco Casaverde.
Em 10 de setembro de 1993 o jornal Correio Braziliense publicou uma entrevista com Belchior em página inteira no Caderno Dois. O cantor e compositor cearense veio à Capital Federal para o show de lançamento do disco, na Sala Martins Pena do Teatro Nacional.
Itamar Franco estava há um ano na Presidência da República, depois do afastamento do abjeto Collor. Na entrevista, concedida ao jornalista Irlan Rocha Lima, Belchior, em resposta sobre a realidade nacional daquele momento, disse que “A confusão é geral, mas acredito que, antes de tudo, precisa-se restaurar a cidadania. Há um fosso intransponível entre as elites, sejam elas políticas, governamentais e empresariais, e o povo. A resolução das questões estruturais do País passa pela política, mas os políticos que estão aí são incapazes, incompetentes para essa tarefa.”
Sem imaginar como estaria o Brasil 26 anos depois, e muito menos querendo ser “o profeta do terror que a Laranja Mecânica anuncia”, como diz a letra de Alucinação, 1976, a análise de Belchior cabe bem, e infelizmente, nestes tempos milicianos, neste agora Ano I da Era Tosca, quando há perigo institucionalizado na esquina, quando o comando do país está entregue a um outro tipo alucinado, quando não é mais tão “difícil saber o que acontecerá”, como alertava em Não leve flores, 1976. Ou nos surpreendemos, sim, quando um fato absurdo supera o do dia anterior. A força fazendo “o mal que a força sempre faz”, como apontava o compositor em Galos, noites e quintais, escrita logo após a escuridão que se instalou com o Golpe de 64, gravada no disco Coração selvagem, 1977.
Bahiuno é o último disco autoral de Belchior. Além de Casaverde, entre as 16 canções, parcerias com Jorge Mello, Graco Braz, Caio Braz, João Bosco, João Mourão e Eduardo Larbanois. É um álbum conceitual, forte em referências históricas que se contextualizam em questões contemporâneas de barbárie social, de ontem, de hoje, e quisera nunca mais. O neologismo do título une o nordestinado baiano com o huno da Ásia Central. Ambos são migrantes, fugitivos de vidas secas em buscas de outros campos e invernada. Migrantes como o rinoceronte, um bahiuno no reino português. "O que pesa no Norte (...) cai no Sul, grande cidade", como registra em Fotografia 3x4, também de 1977.
Na contracapa o cantor colocou a imagem do animal a que se refere no final da letra. A ilustração é do pintor alemão Albrecht Dürer, um dos mais importantes do Renascimento Nórdico, século 16. Belchior fez referência ao primeiro rinoceronte que chegou a Europa, desembarcado em Portugal vindo da Índia, presente do sultão Muzafar II. Até então, o bicho era criatura lendária para os europeus, incluída nos bestiários com os unicórnios.
Como em toda a obra do compositor, Bahiuno apresenta letras de beleza única, literárias e filosóficas, trazem na densidade discursiva uma dimensão política, uma compreensão e reflexão do mundo com seus perigos e esperanças, resiliente, insistindo em lembrar que o novo sempre vem.
Dois anos hoje que Belchior ficou encantado como uma nova invenção, e nós aqui, enquanto houver espaço, corpo e algum modo de dizer #elenão, nós cantamos, cantaremos.
O rinoceronte é mais decente do que essa gente demente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário